E eis que em pleno 4º e último ano da graduação, meus ouvidos são covardemente agredidos com a afirmação de que o caso da adolescente estuprada no Rio "não deve ser usado para levantar bandeiras", já que a garota "foi em lugar perigoso" (sic(k)).
Honestamente, não sei o que nesse tipo de situação me choca mais: a naturalidade com que as pessoas se sentem autorizadas a emitir opiniões tão flagrantemente irrefletidas (e aqui, para justificar esse ímpeto, recorre-se muito à variante brasileira do apelo à Quinta Emenda, que é o "esta é minha opinião, folks!"*), ou o fato de muitas dessas pessoas serem cristãs -- e aparentemente não enxergarem a mais remota sombra de contradição entre seu discurso e o que, em termos de humanitarismo, está no cerne da filosofia da qual se dizem seguidoras. No caso a que me refiro, a contradição "meu discurso sobeja indiferença humanitária" versus "sigo um sujeito cujo lema era amai ao próximo como a ti mesmo" é a que mais grita. Será que tal discurso permaneceria o mesmo se, por exemplo, o caso em questão fosse o de cristãos assassinados no Oriente Médio por membros do Estado Islâmico? Porque também aí seria complicado “levantar bandeiras” – bandeiras relativas, por exemplo, à intolerância religiosa. Afinal, os caras estavam “em lugar perigoso”, pra quê essa ideia de louvar a Cristo numa região cujo profeta é Maomé, gente?! Será que o tom de “as vítimas foram insensatas” persistiria? Não sei. Mas deixarei as contradições religiosas para outra ocasião. Falemos de bandeiras.
Analisemos, primeiramente, o trecho "não deve ser usado para levantar bandeiras". Ora, as únicas "bandeiras" que vi o caso citado levantar (ou, mais apropriadamente, recolocar em evidência) foram a do feminismo e a do repúdio à cultura do estupro. E, neste caso, é preciso mesmo reiterar por que qualquer acontecimento que possa ser usado para impulsionar um movimento social que pretende equiparar mulheres e homens em termos de direitos DEVE ser usado de tal forma? É realmente preciso dizer que, na verdade, ampliar a visibilidade e a premência de ambos os movimentos (que no fim se articulam como um só) é, ao mesmo tempo, o MÍNIMO e o único uso positivo possível a se dar à notoriedade de um caso como o do estupro coletivo, já que tanto a dignidade quanto a integridade e o anonimato da vítima estão feridos de morte e não lhe podem ser restituídos?
Agora, para o caso de a pessoa a que me refiro ser uma dessas pobres almas saramaguianas cuja cegueira se dá por excesso de claridade (“o pior cego é aquele que não quer ver”, na versão popular) -- enfim, para o caso de ser dessas que acreditam não haver mais machismo, não haver isso de cultura de estupro (e quem sabe, por extensão, nem mesmo homofobia, nem mesmo racismo, efeito estufa?, pfff, tudo uma grande conspiração bolivariano-esquerdopata!), reduzamos um pouco a intensidade da luz. A luz é a de um poste, você é uma mulher, está sozinha, recém-anoiteceu, a região é erma, e lá adiante despontam as silhuetas de três homens caminhando em sua direção. Você cresceu ouvindo que devia se vestir decentemente, que mostrar as coxas não ficava bem pra uma mocinha, mas, estranhamente, sente que os códigos ético-indumentários não teriam te livrado do medo que está sentido agora, caso não os tivesse descartado logo que se libertou do jugo moral de uma família de viés mais conservador. Você cresceu ouvindo o seu tio, pai daquele seu primo mais metido a safadinho, gargalhar alto depois de soltar uma pletora de frases imbecis como “prendam as suas cabritas porque o meu bode está solto!”. Você cresceu ouvindo que não podia parecer “fácil” a ponto de os eventuais pretendentes considerarem-na pouco digna de ser o par deles num relacionamento duradouro (quiçá num casamento!), porque “facilidade” demasiada é sinal de que a mulher já “deu” pra muitos, e deus que livrasse a masculinidade desses caras da situação vexatória de eles serem vistos casando com mulher “rodada” (se, no entanto, os “rodados” fossem eles, bom, aí, a sua possível indignação que se danasse); cresceu, também, ouvindo que tampouco devia ser “difícil” a ponto de ninguém te querer e você “ficar pra titia”. O que, aliás, naturalmente conduziu à noção, também passada a você em detalhes, de que é natural que os homens encarem as suas negativas como um sinal bem claro de concordância, “é tudo encenação, óbvio que ela também está a fim”. Você namorou caras que não te deixavam sair com determinada blusa, com determinado short ou calça, que diziam que certo batom ou brinco a deixavam “com cara de puta”, ainda que você jamais tivesse ouvido alguém dizer que seu pai, seu irmão ou seu namorado estavam cometendo indecência quando, nas peladas de fim de semana, caíam no time dos “sem camisa” e aceitavam tirar a deles sem o menor pudor. “Mas isso, pra homem, é normal”, te diriam, se você se contrapusesse. E aos poucos você foi se habituando à noção de que particularidades anatômicas também determinavam o nível de liberdade social que a pessoa teria – uma reflexão que, muitos anos antes de você, algum negro sem dúvida já havia tido, ao se dar conta de que a cor da pele o impedia de se sentar em certos vagões de trens.
Às vezes alguém invocava a justificativa do resguardo: quando pediam para você se cobrir, o que o seu pai, o seu irmão e os seus namorados estavam evitando era que você fosse vítima de homens que, supostamente ao contrário deles, eram incapazes de manter o instinto sexual eclipsado sob os códigos de civilidade. Quer dizer, fomos capazes de atingir um estágio em que pulsões altamente complexas foram aos poucos sendo suplantadas em nome do bom convívio em sociedade (ainda que, para isso, houvéssemos tido de recorrer também a métodos de punição cuja mera perspectiva de concretização fosse desagradável o suficiente para inibir na raiz a ideia do crime), mas nada ou pouca coisa pudemos fazer em relação à libido biologicamente exacerbada do macho Homo sapiens sapiens. “Homens continuam sendo homens, tadinhos.”
Logo, se você fosse aquela mulher numa rua penumbrosa, presenciando a aproximação de três desconhecidos, três homens, estaria sujeita às mesmas formas de terror urbano que um homem comum de nosso tempo poderia sentir na mesma situação (terrores relativos à suspensão do código de civilidade no que tange às seguintes projeções: 1 – eles estão em maior número, logo, podem me subjugar e me extorquir; 2 – eles estão em maior número, logo, podem me subjugar, me extorquir e me bater; 3 – eles estão em maior número, logo, podem me subjugar, me extorquir, me bater e me matar) – enfim, se você fosse uma mulher no contexto aludido, estaria sujeita a esses terrores ACRESCIDO DE UM QUE, NA VISÃO DE MUITAS, MUITAS DELAS, CONFIGURA-SE COMO O PIOR DENTRE TODOS: A POSSIBILIDADE DE A ESTUPRAREM. E se você, homem, sente uma forte aversão à noção de que o estupro pode ser virtualmente pior do que a morte, atine por um momento para o fato de que a sua ideia do que seja o estupro foi inteiramente construída a partir da sua condição de alguém para quem o estupro nunca foi uma possibilidade real considerável – a menos que tenha, desde muito cedo, passado por presídios, a ideia de ser estuprado representa uma anomalia dentro do conjunto de infortúnios cotidianos que um habitante médio das metrópoles considera como prováveis que se lhe ocorram**. Um exemplo prático: todos temem morrer pelos efeitos de uma bomba atômica. Mas você acha que a forma como você, hoje, encara a ideia de morrer por essa causa tem a mesma intensidade da forma com que um civil habitante de um país que estivesse participando ativamente da Segunda Guerra Mundial vislumbrava a mesma perspectiva?
É isto que, em última análise, a expressão “cultura do estupro” representa, pelo menos da forma como a enxergo. A condescendência com posturas que objetificam a mulher (seja hiperssexualizando-a, seja considerando-a um bibelô frágil que “precisa ser protegido”), a anuência apática aos biologismos que debitam os altos índices de estupro na conta da proporção lógico-expansionista dos genes*** (porque a libido exagerada dos homens se explica pelo fato de um homem que transa com 365 mulheres ao longo de um ano ter a possibilidade de ter 365 filhos, ao passo que uma mulher que aja da mesma forma no mesmo período só pode ficar grávida uma vez etc.), o pendor ao bipartidarismo que transforma problemáticas de cunho humanitário em pautas “da direita” ou “da esquerda” – tudo isso e outra série de elementos mais e menos complexos**** se articulam na construção de um cenário que, para as mulheres em todos os cantos, só faz fermentar o terror abjeto ante a ideia de que não são donas de si – de que o “não” que proferirem, ou o “sim” que não proferirem (ou proferirem sob coação) podem não ser suficientes para fazer cessar a investida do outro, a violação do outro, a anulação delas mesmas.
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* A favor da Quinta Emenda, é preciso dizer que pelo menos quem a invoca “tem ciência” de que pode meter os pés pelas mãos, e opta pelo silêncio. No nosso caso, o que se reivindica é o direito de ser leviano e não ter tal leviandade questionada por aqueles que se dispuseram a escutar.
** Isto, claro, sem que se invoque o óbvio: a ninguém é dado saber o nível de desconforto/ horror que uma situação provoca em outro ser humano, seja ela hipotética ou não.
*** No ensaio E Unibus Pluram, David Foster Wallace faz uma reflexão interessante sobre os limites retóricos e éticos da ironia que, creio, também se aplica aos evolucionistas que estacionam na constatação da libido proporcionalmente maior dos homens como motor propulsor de crimes de estupro. Porque, como a ironia, o empirismo cientificista, neste caso, é inútil para colocar algo no lugar das hipocrisias que expõe: exigimos igualdade (de direitos, entenda-se) para criaturas biologicamente desiguais. Eis o terrível quixotismo, a impostura cruel que o pessoal das ciências humanas está tentando impor a nós, bradam, do alto de seus microscópios. E daí não passam.
**** Um exemplo no âmbito da jurisprudência, extraído do artigo “Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a Violência contra a Mulher na Legislação”, de Valéria Pandjiarjian.
“Na legislação brasileira atual, o adultério, em termos formais, afeta homens e mulheres igualmente, o que, entretanto, não ocorre na prática. Sob a alegação de adultério da mulher muitos homens foram - e alguns continuam sendo - absolvidos por júris populares e tribunais da prática de agressões e assassinatos contra suas esposas (e também companheiras, ex-companheiras, namoradas, ex-namoradas, etc.) com fundamento na tese jurídica da legítima defesa da honra. A legítima defesa que, segundo o artigo 23 do Código Penal, é uma das causas excludentes da ilicitude do ato, protege todo e qualquer bem jurídico, inclusive a honra. Contudo, a honra conjugal, alegada nessa tese, não faz sentido, seja pela discriminação e controle da sexualidade da mulher em si, seja porque não há honra conjugal a ser protegida, na medida em que honra é atributo próprio e pessoal. Ao contrário do que se imagina, a tese da legítima defesa da honra, ainda é, por vezes, defendida para absolver acusados de agressões e assassinatos de mulheres, não estando de todo extirpada de nossos tribunais. Em breve estudo 10 nas principais revistas de jurisprudência de todo o país, constatou-se que estas apresentavam, em junho de 1999, apenas 15 acórdãos referentes ao tema. Destas, 11 não acolheram a legítima defesa da honra, 2 decisões a acolheram em tese, mas não no caso concreto e 2 decisões acolheram integralmente a tese.”

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