Os Enamoramentos - Javier Marías



Numa entrevista concedida em 2006 para a revista Paris Review, Javier Marías declara que, para ele, uma das melhores perspectivas a partir das quais se pode narrar uma história é a de um fantasma. Não que o escritor espanhol de 65 anos se considere supersticioso, mas o arquétipo ocidental do fantasma traz engastados elementos particularmente interessantes para um ficcionista: afinal, trata-se de uma figura que, embora tenha deixado o plano físico da vida terrena, ainda pode acompanhar, como testemunha, os eventos mundanos que sucedem sua morte. “Um fantasma “, diz Marías, “é alguém a quem tudo já aconteceu, e que não pode realmente intervir — ou só pode fazê-lo de maneira sutil. Ao mesmo tempo, trata-se de um ser que ainda se importa com o que deixou para trás, tanto assim que retorna. Pode-se dizer que meus narradores são fantasmas, em certo sentido. São passivos, mas continuam curiosos, atentos.”

         Publicado na Espanha cinco anos após a entrevista (e traduzido no Brasil pela editora Companhia das Letras em 2012), o romance “Os Enamoramentos” se mantém fiel a esse aspecto geral da obra do autor espanhol. Narrado em primeira pessoa por María Dolz, funcionária de uma pequena editora, a obra parte de uma premissa a princípio singela: todas as manhãs, a caminho do trabalho, María observa um casal desconhecido que toma café no mesmo estabelecimento que ela; de maneira talvez familiar a qualquer um que já tenha se dedicado ao exercício amador da espionagem, a narradora elabora teorias a respeito dos outros dois clientes — sobre sua rotina, se têm filhos, em que trabalham, como terão se conhecido etc. A morte repentina e violenta do homem do casal, Miguel Desvern, leva a protagonista a aproximar-se da viúva, Luíza, e de Javier, amigo de longa data da família agora enlutada. Aos poucos, percebe-se em Javier um interesse longevo e dissimulado na própria Luíza, e em María uma afeição romântica crescente por Javier.

         O que poderia parecer uma versão estendida da célebre Quadrilha drummondiana atinge, no entanto, níveis de complexidade e sutileza insuspeitados graças à ruptura de um equilíbrio relacionado justamente à perspectiva passiva de que o escritor espanhol se declarou adepto contumaz: a obstinação pelo ato de testemunhar, para um personagem que não compartilha da imaterialidade de um fantasma, demanda, muitas vezes, estratégias que possibilitem um tipo de observação que não implique em seu reverso – ou seja, na condição de ser observado. Assim, a narrativa de “Os Enamoramentos” se torna possível apenas quando a protagonista abandona a contemplação distanciada de um recorte cotidiano que só se lhe afigurava como “feliz” devido, precisamente, a esse caráter fragmentário. Conhecer a tragédia do casal sobre cuja rotina ela fabulava à distância desperta María de sua passibilidade contemplativa ao mesmo tempo em que a expõe à espionagem alheia, e o que acompanhamos, ao longo das quase 400 páginas do romance, é, em essência, uma narradora às voltas com os dilemas suscitados pela etapa seguinte (e, de longe, mais irreversível) desse processo: o surgimento, por vezes involuntário entre aqueles que se põem à vista um do outro, do testemunho.

         A queda cujo motor propulsor é o ato de narrar também é tema recorrente na obra de Marías: de forma mais ou menos explícita, está presente nos romances “Coração tão branco”, “Amanhã, na batalha, pensa em mim” e na trilogia “Seu rosto amanhã” (que alguns críticos consideram sua opus magnum), cujo primeiro volume, “Febre e lança”, se inicia com a assertiva “Ninguém deveria nunca contar nada”— ideia deliciosamente paradoxal, no contexto dos típicos narradores-personagens de Marías. À medida em que se enreda nas vidas e circunstâncias dos outros personagens centrais, sobretudo Javier, com quem começa a ter um caso, a protagonista de “Os Enamoramentos” vai se tornando menos apta a retornar à condição de espectadora desinteressada, por mais que o deseje, num procedimento que parece emular, no plano ficcional, a condição do próprio leitor que avança pelas páginas do romance – dezenas das quais são dedicadas à vã tentativa de parecer que não se sabe o que involuntariamente se descobriu, às formas de simular os efeitos que o processo psicológico de degradação originado no testemunho da infâmia tem sobre a materialidade do corpo.

         Outra implicação catastrófica da compulsão pelo ato de narrar abordada no romance diz respeito ao poder evocador do discurso, capaz de trazer à tona aqueles com cuja ausência já nos habituamos, bem como de cravar na pele de quem o testemunha uma mancha indelével. Neste sentido, dois clássicos literários são recuperados por Marías como artifícios intertextuais de proficuidade insuspeitada: os romances “O coronel Chabert”, de Balzac, e “Os três mosqueteiros”, de Alexandre Dumas. Do primeiro, recupera-se o estranho incômodo do retorno tardio, na figura de um personagem que volta para casa anos após ser dado como morto em campo de batalha; do segundo, a pecha simbólica da flor-de-lis, gravada na pele para a identificação de prostitutas e criminosas na moralista Paris do século XVII. Ambas as imagens funcionam como leitmotivs narrativos, aprofundando-se em significado e em sutileza a cada ocorrência ao longo do romance. Assim, o espectro de Miguel Desvern retorna como memória rediviva, a impor sobre o amigo Javier incumbências tão moralmente inquietantes quanto as legadas ao príncipe Hamlet pelo fantasma de seu pai. María, por sua vez, ao fazer-se confessora do indizível, ao tomar conhecimento de eventos de cuja realidade, como Bentinho em relação à fidelidade de Capitu, jamais poderá estar certa, torna-se ela própria a marca da infâmia, mácula a ser ocultada — alguém cuja queda se deve primeiramente ao ímpeto de abandonar a contemplação e assumir um protagonismo para cujo peso nunca se pode estar de fato preparado.


         E é este, afinal, o paradoxo que a obra de Javier Marías no geral e “Os Enamoramentos” em particular parecem obstinados a evidenciar: se a narrativa que nos condena é a mesma que nos move a narrar-nos a nós mesmos, a justificar-nos pela palavra, como se pode pretender resistir a ela? Quando compartilhamos, oral ou verbalmente, excertos embelezados de biografia ou de ficção (supondo de modo algo utópico que haja fronteiras fixas em torno de seus domínios), não aspiraríamos, como o coronel do romance de Balzac, à condição de mortos que retornam, embora aqui pelo testemunho dos outros? Não estaríamos, enfim, guarnecendo uma flor-de-lis indelével com detalhes estéticos que a tornem menos repulsiva?

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