Literatura, fragmentação e memória: uma análise intertextual de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"


No instigante “O livro dos livros perdidos”, de 2005, o crítico escocês Stuart Kelly faz um inventário comentado de obras literárias que não chegaram até nossa época. Entre as causas desses desaparecimentos, o autor elenca uma série de fatores que variam quanto ao grau de inevitabilidade: de incêndios intencionais (quase sempre motivados por questões políticas) a extravios por acidente, passando por negligência de editores e a morte prematura dos próprios escritores, a soma dos livros que se perderam no caminho até o presente parece exceder em muito a daqueles que pudemos apreciar em sua totalidade.
Em partes, pelo menos. Ao estender a noção de “obra perdida” inclusive àquelas que nunca foram concluídas da forma como seus idealizadores pretendiam, Kelly parece apontar para a falta de lógica do conceito de “totalidade” quando se trata de literatura.  O fato de escritores como Marcel Proust, Robert Musil, Franz Kafka e Virgílio, entre tantos outros, não terem julgado suficientemente desbastadas suas respectivas obras-primas (os dois últimos chegaram mesmo a deixar ordens expressas para que elas fossem incendiadas) talvez conduza à constatação de que toda obra sofre mutilações no processo de transposição do plano das ideias para o físico – de que o corpus literário, afinal, é inteiramente construído de fragmentos. Esse caráter inacabado, no entanto, não configura necessariamente uma deficiência, estando talvez mais próximo do que se nota em certos monumentos da antiguidade (pensemos no Coliseu, na Esfinge de Gizé, no busto de Ramsés II), cuja incompletude de algum modo reforça a noção de transitoriedade inerente mesmo à memória e aos grandes feitos de civilizações pregressas, e por extensão o fascínio que suscitam.
Partindo do pressuposto de que toda obra literária seja um esforço de resgate, por parte do autor, desse “modelo ideal”, inacessível independentemente dos mecanismos estilísticos que se empregue, pode-se comparar a impossibilidade de sua materialização plena ao eterno contraste entre memória e registro. Esse dilema – do qual a historiografia tem se ocupado desde seus primórdios, com Heródoto – está satisfatoriamente resumido na admirável assertiva de um personagem secundário do romance “O Sentido de um Fim”, do inglês Julian Barnes: “história é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”. O mesmo, pois, se poderia dizer da literatura.
Friedrich Nietzsche[1] tangencia a questão ao evidenciar os motivos por que a tentativa de criar uma “ciência da moral” resulta, já de saída, em fracasso: não é possível objetificar a moral, tal qual um minério ou uma espécie recém-descoberta de mamífero, pois ela possui caráter relativo, sendo naturalmente refratária, portanto, ao método científico. Não há fatos que sejam morais em si mesmos, mas um conjunto de interpretações morais de fatos amorais. A realidade que nos circunda é inevitavelmente contaminada por nossas percepções, sejam estas de cunho ético ou estético. Daí se sucedem, por exemplo, os questionamentos recentes da psicologia quanto à eficácia dos relatos de testemunhas oculares de crimes, uma vez que predisposições individuais e o próprio contexto situacional em que a memória é produzida podem interferir em seu grau de confiabilidade[2]. No campo das artes, as preferências estéticas cultivadas ao longo de uma vida de leituras essencialmente distintas podem transformar a lembrança da apreciação do Ulisses, de James Joyce, em um agradável retorno a um turbilhão de reflexões intimistas ou em um exercício de autoflagelação devido à extrema monotonia do enredo.
O problema do apego ou não à veracidade dos fatos narrados tem caráter secundário em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ao contrário do que se sucede, por exemplo, com “Dom Casmurro”, a outra obra capital do escritor carioca. Embora se trate de uma “autobiografia”, em “Memórias...” a contaminação do discurso pela personalidade individualista de quem o emite redunda não numa flexibilização da realidade em benefício próprio, mas em uma franqueza por vezes agressiva. Essa sinceridade ferina não raro se volta contra o próprio leitor, suas preferências estéticas e posturas presumidas. Uma justificativa óbvia para o comportamento de Brás Cubas está explicitada no próprio livro[3], e reside na condição de não-vivo do protagonista, de ser que, tendo se desprendido do mundo material, não vê razões para permanecer fiel às normas de conduta vigentes entre aqueles que ainda o habitam[4]. Quando há omissão de trechos presumivelmente importantes de sua trajetória (lembremos de quando a nomeação ao cargo de ministro d’Estado é indeferida, no pontilhado capítulo CXXXIX), ela se relaciona mais a um escrúpulo pessoal em rememorar tais acontecimentos – no caso da não-nomeação, o escrúpulo da humilhação pelo fracasso, por exemplo – do que a uma manipulação ególatra da realidade.
No ensaio que dedica a "Memórias póstumas" no admirável "Os livros e os dias", o argentino Alberto Manguel anota que a maioria dos personagens afetivamente próximos ao protagonista está morta quando se inicia a narrativa. Isto talvez concorra para ampliar a mordacidade com que Brás Cubas se lança à descrição física e moral inclusive de membros da própria família. Não há, aqui, uma irmanação oriunda do fato de todos, agora, terem voltado a integrar um mesmo plano da realidade. Em “Reparação”, magistral romance de 2001, o inglês Ian McEwan relata a trajetória paciente de uma escritora que, para poder publicar a história verídica que está redigindo, precisa esperar até que praticamente todas as pessoas eticamente envolvidas ou implicadas nesse relato estejam mortas. Ainda assim, contudo, ela não o faz até ser informada por seus médicos, já na velhice, de que tem pouco tempo de vida devido a uma enfermidade. A certeza da morte alheia não é suficiente para que mandemos a ética às favas e nos livremos do “vício hediondo” da hipocrisia: é preciso que também tenhamos essa convicção a respeito de nós mesmos.
Para além do nível de confiabilidade do relato, no decorrer de seu monólogo sepulcral, o narrador do romance de Machado demonstra preocupação, em maior ou menor escala, com cada uma das problemáticas sobre memória, transitoriedade e registro mencionadas até aqui. Já na epígrafe, em que o volume é oferecido “ao verme que primeiro roeu suas frias carnes”, temos a sugestão algo melancólica de que, se o destino de quem produziu e vivenciou tais acontecimentos foi o ocaso existencial, não há motivos para supor que o mesmo não se dará com o registro fragmentário de seus dias. A descrença na permanência das próprias ideias (na permanência da própria arte) parece ir na contramão do anseio por se inserir na posteridade que teria motivado imperadores e artistas a empresas megalomaníacas no passado. Trata-se, contudo, de um embuste, se considerarmos que, de acordo com o próprio Brás Cubas, seu maior empreendimento criativo não era uma biografia, mas um emplasto medicinal – e por tal objetivo o personagem veio, de fato, ainda que indiretamente, a falecer. De seu lugar no pós-vida, Brás Cubas sente-se à vontade para falar do apego desmedido a uma ideia que culmina na negligência da própria saúde – e consequentemente na aniquilação do idealizador/artista.
A propósito dessa abnegação, no último dos tópicos da série “A técnica do escritor em treze teses”[5], Walter Benjamin afirma que “a obra é a máscara mortuária da concepção”. É difícil pensar num contexto em que a frase seja mais literalmente verdadeira do que o universo memorialista criado por Machado, independentemente do que se considere a opus magnum do protagonista, se a própria biografia ou o emplasto fracassado. Enquanto o corpo de Brás Cubas prossegue em sua lenta marcha de decomposição (da qual a epígrafe recupera apenas o macabro começo), as memórias permanecem intactas, como o decalque em gesso das feições de um recém-falecido. Embora a presença do leitor seja sempre presumida, é preciso, ao considerarmos a condição existencial (ou, melhor dizendo, não-existencial) do narrador, imaginá-lo como o enunciador solitário de um longo solilóquio, um Hamlet sem plateia cuja loucura apenas em partes se pode chamar “autoconsciente”. Neste sentido, o mero registro mental de seus feitos, que incluem a obsessão por uma ideia que supostamente o levou à morte, de alguma forma se mostra suficiente para justificá-lo aos olhos da postumária. Hamlet, ao perecer num duelo na sala do Castelo de Elsinor, incumbe o amigo Horácio de “explicar sua causa àqueles que duvidassem”[6]. Suponho que o impulso que leva Brás Cubas a narrar a própria trajetória seria menos verossímil, dentro do contexto extraordinário ao qual o romance remete, caso o personagem possuísse um amigo que, como Horácio, se dispusesse a esclarecer as circunstâncias de sua existência às gerações vindouras – e que, claro, tivesse condições intelectuais para tanto. De acordo com essa perspectiva, também é providencial que o personagem não tenha tido filhos, uma vez que perpetuar “o legado de sua miséria” representaria uma carga genealógica demasiado brutal para os ombros do herdeiro. De fato, Brás Cubas declara a renúncia à paternidade mais com orgulho do que com remorso, como se julgasse digna de reconhecimento sua opção por não transferir uma alma da confortável não-existência para um mundo que se lhe afigurara tão hostil e, em muitos sentidos, frustrante. Extintas as possibilidades de transmissão desse legado de mediocridade, resta ao próprio narrador tentar justificá-lo por meio do testemunho.
A noção da criação artística como mecanismo vindicador da existência também está presente no conto “O Milagre Secreto”, de Jorge Luis Borges[7]. Nesse texto, narra-se a história de um escritor condenado à morte que testemunha um evento absurdo: no momento da execução, o tempo e a realidade ficam repentinamente paralisados, a bala suspensa a caminho do paredão. Depois de refletir sobre a cena (seu raciocínio parece a única coisa que se manteve em movimento), o protagonista se dá conta de que um pedido feito a Deus no cárcere, às vésperas da execução, acabava de ser atendido, de modo que teria o prazo de um ano para se dedicar à conclusão de uma peça inacabada que, segundo sua oração, “o justificaria”. É interessante notar como, tanto em “Memórias Póstumas” quanto em “O Milagre Secreto”, a criação da obra capital se dá no plano psicológico. É como se, para o verdadeiro artista, importasse menos a certeza de que o resultado de seus esforços proliferará (lembremos do prognóstico pessimista do “defunto-autor” de Machado quanto ao número de leitores que suas memórias teriam, na introdução do livro) do que a satisfação (moral? Estética?) de tê-lo alcançado. Concluída a peça, encerradas as memórias, ambos os personagens veem-se livres para abraçar o vazio existencial.
A propósito da relação entre escrita, memória e finitude, escrevi, em um romance engavetado de 2012:

“Conceitualmente, a maior diferença entre bibliotecas e cemitérios é que o que se guarda nos cemitérios são os corpos dos seres humanos; nas bibliotecas, suas mentes, a extensão do que a memória ou a imaginação produziu enquanto existia. É lícito supor que, se o que comandava o funcionamento do corpo, as palavras ditas e as ações praticadas era a mente, faria mais sentido que nosso medo atávico fosse o de caminhar por entre as estantes de uma biblioteca, e não por entre os túmulos de uma necrópole. Para enfraquecer esse desconforto hipotético, alguém poderia argumentar que numa biblioteca pode haver livros de autores ainda vivos, ou a mente de gente que ainda a usa. Da mesma forma, porém, não é raro encontrar, em cemitérios, jazigos para pessoas que seguem respirando. Nos dois casos, há algo de morbidez, de resignação ante a ideia da própria finitude (...). Quem é adepto da escrita pode estar ciente de que a consciência se esvai junto com a vida tanto quanto quem paga as mensalidades do próprio túmulo está ciente de que pode levar um tiro amanhã. O ato de não escrever, então, só seria desculpável em pessoas que acreditam na imortalidade da alma, ou na da consciência.”

É possível que a ideia do leitor de obras escritas por autores já falecidos como uma espécie de encarregado de necropsiar[8] mentes esteja sugerida, de forma obviamente menos lisonjeira, na já citada dedicatória de “Memórias Póstumas”. Brás Cubas tem consciência da absurdidade de se dedicar o volume “a um verme”, e ao fazê-lo, além de reconhecer o inevitável destino a longo prazo de seu relato, parece atingir enviesadamente o leitor que, movido pelo equivalente intelectual da curiosidade mórbida, se dispõe a extrair do volume alguma “sabedoria de vida”. Ao devassar as memórias produzidas por um habitante de além-túmulo, de alguma forma somos aquele verme, parasitando fatos, conhecimento e opiniões sem oferecer nada em troca além de resmungos de enfado ou muxoxos de desaprovação. Brás Cubas capta esse mutualismo desnivelado, e ora censura nossas preferências intelecto-canibais – ao reiterar a falta de sintonia entre suas pretensões autorais e as prováveis predileções estilísticas de quem o lê –, ora ridiculariza nossa sofreguidão, estabelecendo a desnecessidade de determinado capítulo apenas para, várias páginas à frente, afirmar que, para se compreender o que se seguirá, é necessário estar inteirado do que se deu no suposto trecho supérfluo.
No capítulo que versa sobre a figura do narrador na obra do russo Nikolai Leskov, Walter Benjamin resgata com certo saudosismo um costume bastante típico dos lares medievais: a reunião de familiares, amigos e até mesmo desconhecidos em torno do leito de um moribundo, na muda antecipação de seus estertores. De acordo com Benjamin, era comum que, nessa situação específica, se manifestasse uma crença compartilhada na ideia de que a iminência do fim imbui naturalmente os seres humanos de uma “sagacidade transcendental”[9] – fruto da reavaliação ao mesmo tempo ponderada e momentânea de suas existências como um todo –, que o indivíduo em vias de expirar sente uma urgência quase fisiológica em expor. O que atraía no espetáculo do fim da existência, então tornado público, era justamente a possibilidade de receber daquele que deixava o plano material um “último conselho” que encapsulasse, com a brevidade típica das palavras finais, a essência do viver bem.
Entre leitor e obra se estabelece, sugere Benjamin, presunção similar: quando nos dispomos a ler um livro, a acompanhar a trajetória de determinado personagem, estamos buscando, por vezes de forma inconsciente, uma espécie de crescimento pessoal inerente ao gênero do testemunho. Isto se dá por termos consciência, assim como os espectadores dos instantes finais de um moribundo, de que o ser de ficção[10] não tem como sobreviver para além dos limites físicos que seu autor (o equivalente, nesta analogia, de Deus) lhe impôs – de que, em suma, o próprio suporte material que contém a história, o livro físico, nos faz saber que a existência do personagem se limita ao espaço entre a capa e a contracapa, entre a folha de rosto e o colofão. Imagino que a mania apresentada por vários leitores – entre os quais me incluo – de examinar as palavras finais de um romance antes mesmo de principiar sua leitura seja um sintoma velado dessa crença: ávidos por descortinar uma nesga que seja do suposto “sentido da vida”, avançamos o mais rápido possível até o instante em que essa epifania em tese virá à tona – isto é, até a morte.
Ao fazer de seu narrador um defunto, Machado de Assis relaciona a circunstância física literal da morte ao conceito do personagem que cessa de existir ao fim do livro, e, assim, como que redobra a autoridade que estamos dispostos a atribuir ao testemunho registrado nas páginas. Sem hesitar na crença de que suas palavras se dirigem a um interlocutor do plano ao qual deixou de pertencer, Brás Cubas intui estar sendo alvo dessa “garimpagem” existencial, e volta a brincar com seu leitor hipotético. O defunto-autor tergiversa, interrompe o fluxo da narrativa para tratar de um causo trivial, reconhece tal rodeio sem, no entanto, se desculpar por ele e, aqui e ali, nos surpreende com pérolas aforísticas que parecem pertencer à exata estirpe das que estávamos procurando: concisas, eloquentes, encerrando um princípio moral, uma observação sagaz ou um achado de espirituosidade. Entretanto, mesmo quando os níveis de perspicácia se afinam com nossas expectativas[11], as frases que os denotam nos são oferecidas por Brás Cubas com desdém, quase como se sua produção lhe fosse de pouca dificuldade, e não fizesse diferença concedê-las aos pedintes que somos. A todo momento, o narrador parece estar (como ele próprio diz em determinado ponto do romance, a respeito da superstição de duas outras personagens) “a rir-se consigo mesmo” de nós; “um riso filosófico, desinteressado, superior”.
Atribuir a fragmentação do discurso em “Memórias Póstumas” a um mero artifício para frustrar leitores ávidos por linearidade é reduzir bastante seu alcance linguístico e literário. Trata-se, de fato, de uma das maiores qualidades do livro, a capacidade de articular, de maneira absolutamente convincente, estrutura e significado. Não temos, aqui, um experimentalismo narrativo gratuito, cujo objetivo fosse mascarar a atrofia do conteúdo com o rebuscamento da forma (pensemos, a título de comparação, nas limitações autoimpostas presentes em várias obras oriundas da Ouvroir de Littérature Potentielle, ou em alguns lamentáveis exemplares de poesia concreta, cujas pretensões vanguardistas não raro naufragam nas águas rasas de um virtuosismo estilístico que é o equivalente, em literatura, do pianista que toca com os pés). Ao tratar, em retrospecto, da construção da identidade do narrador, Machado está ciente de que somos aquilo de que escolhemos lembrar, e seleciona somente as memórias que parecem corroborar a imagem que Brás Cubas tem de si mesmo. Quando esclarece a um crítico imaginário, no capítulo CXXXVIII, que adapta a velocidade de seu estilo às fases que está narrando da própria vida (com a mocidade correspondendo, talvez, a uma abundância de substantivos e verbos de ação, e a velhice pródiga em advérbios e verbos reflexivos), o personagem nos dá uma pista de seu método literário, que emula a escola arquitetônica funcionalista de Bauhaus ao sugerir uma submissão irrestrita da forma à função.
Parece-me coerente, portanto, que a maneira natural de integrar estrutura e significado num projeto que busque recontar uma trajetória existencial da perspectiva de quem a vivenciou seja empregando uma linguagem tateante, multiforme, que se reduz a sinais de pontuação quando versa sobre o primitivismo dos instintos (“O velho diálogo de Adão e Eva”, Capítulo LV), a uma série de substantivos e imagens sem coesão sintática num contexto de luto (“Notas”, Capítulo XL), a uma frase de auto-proclamada imprestabilidade para lidar com o enfado que é a vida a partir dos 50 anos (Inutilidade, Capítulo CXXXVI); uma linguagem que oscila entre a sutileza e o escracho, entre a grandiloquência e a frugalidade, reproduzindo, no âmbito estrutural, a confusão de sentimentos a que o gênero humano está sujeito no decorrer de sua passagem pela Terra, de modo a conferir tridimensionalidade à experiência de acompanhar um dos mais fascinantes espécimes desse gênero, do berço ao túmulo. Ou, mais apropriadamente, do túmulo ao berço.
Na história da literatura, houve outras tentativas interessantes – umas bem-sucedidas, outras nem tanto – de associar o caráter fragmentário do discurso a aspectos relacionados à reconstrução da memória. No conto que intitula a coletânea “O Aleph”, de 1949, Jorge Luis Borges tece uma crítica ao que considera uma limitação inerente à linguagem: a impossibilidade de transmitir ideias de maneira não-linear. O narrador e protagonista da história é apresentado, num exercício metafísico tipicamente borgeano, a um ponto no sótão de uma casa em Buenos Aires que contém todos os outros pontos do universo, em todas as épocas, estados e formas. A tentativa de descrever uma experiência que chega aos sentidos de maneira simultânea valendo-se de um mecanismo que efetua a transmissão de conceitos sucessivamente revela-se, como se poderia deduzir, frustrante em diversos níveis, e o personagem se contenta em recuperar para o leitor uma parcela infinitesimal daquilo de que foi testemunha. O simulacro em palavras que produz da experiência resulta fragmentário, desconexo – mas ainda assim imponente, como as réstias de um sonho que se supõe perturbador.
Em outro texto, intitulado “Funes, o memorioso” (Ficções), o autor argentino descreve a forma como as impressões sensoriais da realidade chegam ao personagem-título, que, após um acidente de cavalo, tem a capacidade de retenção da memória estendida ao infinito. Funes torna-se incapaz de descartar qualquer informação, por mais desprezível que seja, e entre suas impressionantes habilidades figuram a de “saber as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882” e a de poder “compará-las na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro”, às vésperas de determinada batalha. Mais uma vez, o narrador (que não é Funes) se ressente de não poder descrever a contento a profusão de cores, sons, imagens, odores e sensações táteis que inundam simultaneamente os sentidos do outro, e precisa se restringir a aproximações que deem conta de parte desse assombro. Assim, registra-se, entre outras coisas, que o sonho de Funes é tão nítido quanto a vigília dos demais indivíduos, e que a disfunção supostamente o tornara inapto à atividade de pensar, uma vez que esta pressupõe a abstração e a generalização – dois conceitos que a mente exata de Funes jamais poderia colocar em prática outra vez. Se Machado usa a linguagem para aproximar o relato da experiência cotidiana à qual ele remete, Borges evidencia a inutilidade desse sistema quando se trata de lidar com as abstrações do mundo metafísico.
O conto “Circuito fechado”, de Ricardo Ramos, é frequentemente empregado por professores de língua portuguesa para ilustrar o conceito de que a coerência textual não está necessariamente submetida à coesão sintática. Nesse texto, o autor elenca substantivos e locuções sem estabelecer entre eles qualquer ligação coesiva, de modo que a produção de sentido se dá pela ativação do conhecimento do leitor em relação aos locais e/ou situações aos quais as expressões remetem. A fragmentação, aqui, evidencia o automatismo do comportamento e das relações cotidianas, seu caráter por vezes protocolar. Embora seja uma intencionalidade diferente da de Machado de Assis no já citado capítulo “Notas” (lá, o que se busca é esquivar-se da dor de rememorar em detalhes um episódio pungente da biografia do narrador, que só consegue fazê-lo em “flashes”), este conto, parece-me, deve muito àquele triste parágrafo das reminiscências de Brás Cubas.
A quarta parte de “2666”, romance de quase mil páginas do chileno Roberto Bolaño, dedica-se a destrinchar uma série de assassinatos de mulheres ocorridos na fictícia cidade de Santa Teresa, no México. Com uma precisão de laudo pericial, Bolaño vai justapondo nomes de vítimas, circunstâncias da ocorrência, objetos empregados no crime, grau de violência, presença/ausência de estupro etc., de modo que o que se mostrara repulsivo nos relatos dos primeiros casos está, ao final de mais de cem páginas desses testemunhos, cristalizado numa espécie de “zona de indiferença” dentro de nosso senso de indignação. De maneira genial, o autor emprega a estrutura protocolar, distanciada, fragmentária para reproduzir, no nível do discurso literário, o anestesiamento de nossa empatia provocado pela submissão diária a quantidades cavalares de relatos de violência nos meios de comunicação.  
Da literatura para o cinema, em “O Cão Andaluz”, de Salvador Dalí e Luis Buñuel, tem-se uma sequência desconexa de imagens surreais, cuja aleatoriedade só faz sentido quando somos apresentados à intencionalidade da obra: recriar em tela a sensação exata de estar em um sonho. Há um exercício de narrativa surrealista similar no capítulo VII de “Memórias Póstumas”, no qual o protagonista descreve em detalhes o delírio mental que antecedeu sua morte, com a empáfia costumeira que o faz proclamar a suposta importância desse curto relato para a ciência.
A fragmentação do discurso como mecanismo emulador do processo de aquisição e armazenamento de memórias não é, como se depreende do último exemplo, uma prerrogativa da literatura. Dentre os artistas que se dispuseram a empregar esse artifício, poucos parecem ter alcançado um equilíbrio satisfatório de forma e sentido. Dentre esses, menos ainda se destacaram por antecipar, com virtuosismo e estilo, aspectos caros a uma estética que sobreviria às suas próprias. É no centro deste último grupo que figura, inconteste, Machado de Assis, observando de cima as tentativas da posteridade de escapar à sombra que sua influência projetou. Infelizmente, contudo, tais tentativas resultaram, no mais das vezes, menos em evolução ou mesmo continuidade do que em pastiche.
É como se, quanto à possibilidade de haver deixado herdeiros dignos de seu espólio literário, o Bruxo do Cosme Velho se isentasse de culpa, invertendo melancolicamente Brás Cubas: não teve “filhos”, não transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua grandeza.




[1] NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Editora Companhia das Letras, 2012.

[2] A esse respeito, sugiro a leitura do excelente “Prova Testemunhal”, de Luís Filipe Pires de Sousa.

[3] “(...) a franqueza é a primeira virtude de um defunto.” (p. 55)

[4] Consta do roteiro da minissérie/filme “O Auto da Compadecida”, de 1999, escrito por Guel Arraes e Adriana Falcão e baseado na peça de Ariano Suassuna, uma cena em que o protagonista, João Grilo, ao ser interpelado no purgatório pelo cangaceiro Severino, que em vida lhe causava medo, retruca: “Já morri mesmo, não vou ficar ouvindo desaforo de ‘seu’ ninguém. Agora não tem pobre nem rico, valente nem frouxo. É todo mundo igual diante de Deus. Ou do Diabo.”

[5] “Rua de Mão Única”, p. 31.

[6] Ato V, Cena II, p. 114.

[7] “Ficções”, 1944.

[8] Em uma coluna informativa no site correiodeuberlandia.com.br,  encontrei a seguinte definição para a profissão de “técnico em necropsia”: “[sua] função (...) é de abrir um cadáver, mexer em todos os órgãos, retirá-los caso seja necessário e fechar o corpo”. Semelhanças com o que faz o leitor que abre um romance, extrai as representações mentais que lhe convêm e torna a fechá-lo não me parecem forçadas.

[9] Existe um eco dessa ideia na predisposição demonstrada por alguns a atribuir significados supostamente premonitórios às últimas palavras de pessoas que faleceram em acidentes. Mais uma vez, a eventualidade da morte ressignifica discursos que, em outro contexto, poderiam passar por triviais.

[10] Em seu “Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage”, Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov falam em “ser de papel”, alertando para a inutilidade do exercício de se tentar preencher certas lacunas da trajetória narrada: “Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever ‘biografias’ de personagens, explorando partes de sua vida ausentes do livro. (...) Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é um ‘ser de papel’.” (p. 286)

[11] Não surpreende que a máxima “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”, constante do capítulo CXIX, esteja entre as mais citada do livro, inclusive entre pessoas que nunca o leram.

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