Em “A breve história de Charles Mankuviac”, Antônio Xerxenesky menciona dois exemplos dos tradicionais epítetos totalizantes que a crítica americana costuma atribuir ao conjunto da obra de grandes autores. Segundo o narrador, a prosa do inglês Ian McEwan se resumiria à “racionalidade”, enquanto a do espanhol Javier Marías seria melhor identificada pela “digressão”. Quando li este conto pela primeira vez, já conhecia o suficiente de McEwan para concordar (contrariado) com a afirmação, embora ainda não houvesse lido nada de Marías.

Ocorre que, devido a uma dessas felizes coincidências que a disposição aleatória dos componentes da fila de leituras por vezes proporciona, tive a oportunidade de ler, em sequência, Os Enamoramentos, do escritor espanhol, e Amor sem Fim, do inglês. E, por uma coincidência mais espantosa ainda, ambos os autores descrevem ao menos uma cena cujo contexto similar funciona muito bem para contrapor suas supostas maiores características, segundo a crítica especializada.

Tanto “Amor sem Fim” quanto “Os Enamoramentos” são narrados em primeira pessoa (por Joe Rose, um jornalista científico, e María Dolz, funcionária de uma editora, respectivamente). Na cena em questão, os protagonistas visitam sozinhos uma personagem que acabou de sofrer a perda do cônjuge de maneira violenta. Em Marías, temos o completo desprezo pela descrição do ambiente (a casa da personagem enlutada), pouca ou nenhuma descrição física da anfitriã e o pendor desta à autoanálise. A interlocutora fala, sugere, disseca a própria condição de luto e a ausência de perspectiva como se estivesse em uma sessão de terapia. Entremeando seu monólogo, há a voz mental da própria María, que observa, analisa e  estende as implicações da fala alheia a ponto de criar uma realidade subjacente, na qual cada manifestação de dor e saudade já assentou, em que o cenário de desolação atual se converteu em passado e o que era absurdo transfigurou-se numa normalidade da qual já não se quer ou se pode abrir mão. Temos, assim, o embate constante entre a dimensão pragmática (da personagem que se apega com fervor a qualquer ouvido para o qual narrar a grandeza de sua perda ainda não tenha virado uma tediosa e ofensiva ladainha) e a potencial, que se mostra tangível pela clareza e irrefutabilidade das observações de María, criando, assim, uma zona de intersecção penumbrosa entre o evento, sua memória e as consequências da passagem do tempo sobre ambos.

McEwan, por outro lado, procura na descrição do jardim, da fachada da casa, dos objetos da sala e do semblante da anfitriã o reflexo do trauma recente -- sempre admitindo, no entanto, a facilidade de se presumir que a tristeza irradiada por todos esses aspectos "possa ser uma mera projeção do estado de espírito" do próprio narrador, que passa por uma crise conjugal durante a cena. A luz amarronzada, o pó que se acumula, as paredes e o chão encardidos, tudo o que poderia ser facilmente associado ao abandono material em que se costuma imergir quando alguém que amamos deixa de existir é imediatamente ancorado em uma explicação alternativa: neste caso, a austeridade e o desleixo também poderiam advir da adequação a uma vida intelectual (o falecido chefe da família tinha ligações com o mundo acadêmico), sendo , portanto, anteriores ao evento, ou ainda configurarem simplesmente uma "reação instintiva contra os excessos bélle époque da geração anterior". É apenas ao fim de sua preleção racionalista, quando qualquer ranço de "pareidolia sentimental" foi descartado, que Joe (que McEwan) se sente confortável para ceder: "Agora, tudo aquilo constituía um cenário perfeito para a infelicidade."

Embora me sinta mais literariamente atraído pela abordagem imersiva de Marías, é inegável que as sucessivas reavaliações de uma mesma cena à luz decantada de diferentes prismas (sobretudo o de um realismo árido, desesperançado) promovidas por McEwan representem um poderoso e prolífico artifício narrativo. E o holismo reducionista da crítica estadunidense, quem diria, tinha lá sua razão.

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