Você tem direito a uma ligação
Uma situação que volta e meia
aparecia nos filmes era a do sujeito preso durante a madrugada e a quem a
polícia dava a oportunidade de fazer uma única ligação. Até hoje sou fascinado
por ela. Não existe ocasião hipotética que melhor defina quem está no topo da
hierarquia de consideração de cada um do que a prisão repentina às três da
manhã e a oportunidade (anunciada pelo delegado com adequado tom solene, de
Escolha de Sofia) de realizar um único telefonema. É por isso que, mesmo grogue
de sono, sempre tentei encarar as ligações tardias e com número desconhecido
que recebi ao longo da vida menos como trotes potenciais (ou enganos potenciais)
do que como prováveis demonstrações superlativas de consideração. Uma
consideração que se sobrepusera, inclusive, ao fato de eu não ser rico nem
formado em Direito, comprovando que o interesse do interlocutor ia muito além
da crença em meus recursos diretos para tirá-lo de lá.
Até aqui, infelizmente, foram
madrugadas de total decepção, com o meu emocionado "Alô?" sendo
invariavelmente respondido com um patético "tem um Fusca cor de
gelo..." que eu nem termino de escutar. Mas ainda conservo a esperança,
claro, que pelo menos é maior que a dos estudantes de Direito, cuja autoestima
sequer pode contar com o reforço de uma situação dessas para medir o nível da
sincera afeição alheia.
-- Pronto.
-- Oi, Fernando? É o Mário, tudo
bem, cara? Seguinte, eu fui pego no bafômetro por causa do licor de uns
bombonzinhos aí, será que não tem como tu dar um pulinho aqui na delegacia e
resolver isso pra gente?
-- Caramba! Quantos bombons tu comeu?
-- Não, não, os bombons ainda não
tinham sido feitos, eu tava levando o licor pra fábrica. E aí, você vem? Eles
não estão acreditando que sou réu primário, mesmo eu mostrando que não sei ler.
Acham que é porque estou bêbado, não acreditam que tive que abandonar a escola
na segunda série...
-- Espera um pouco, vou pesquisar
aqui na internet pra ver o que pode...
-- Como assim? Tu não é formado
em Direito?!
-- Não, pô, as aulas só começam
mês que vem. Agora, o que a polícia te disse quando te autuou? Mário? Mário?
Ricos são outra classe que sofre com a
impossibilidade de distinguir o afeto interesseiro do genuíno, num caso assim. Ou
sofreria, se seu dinheiro não comprasse, inclusive, a solução pra mais esse
risível problema menor. Daí o fato de que quanto mais rica é a pessoa, maior é
a hesitação com que atende a uma ligação no meio da madrugada. Até porque em
geral ela sabe que só pode significar uma de duas coisas: prisão na família ou morte na família. E
sempre teme o pior.
-- A-alô?
-- Oi, Clóvis. A tia Cecília...
acabou de falecer...
-- Nossa, que susto! Pensei que
os homi tinham derrubado a boca do primo Etc...
Perguntar-se para quem ligaríamos
se fôssemos presos às 2:47hs num remoto condado do Texas é um exercício de
autoconhecimento tão poderoso que é um absurdo que não constasse dos cadernos
de perguntas que circulavam pela classe, na sétima série, ou mesmo hoje, dos
cadastros das redes sociais. Felizes os que demoram mais de dez segundos para
responder a uma questão dessa natureza, porque significa que possuem uma gama
maior de opções. Ou infelizes, porque significa que precisam pensar muito para
achar um único desgraçado que vá fazer valer a escolha. Se bem que a demora também possa
estar relacionada aos fatores numerosos e complexos a serem considerados, e que
vão da conduta do escolhido quando sob efeito do sono até sua própria propensão
a sacaneá-lo em ocasiões anteriores.
-- Alô?
-- Edu, é o Guilherme, presta
atenção, me pegaram bêbado e sem as calças, comendo uma égua aqui da estância
do professor Valdemir, você tem que me ajud...
-- Rá, rá, rá, genial, cara, genial.
-- Não, porra, eu tô falando
sério, isso não é treinamento...
-- Tá, tá, olhaí, deixei o estoque
de risadas no sonho, vou voltar lá pra pegar e amanhã eu rio mais na faculdade,
valeu?
Há imprevistos terríveis.
-- Alô, Estella? É o Cláudio. Desculpa
te perturbar a essa hora. É que eu acabei de ser preso roubando um pote de
danone no mercado, e como ‘tão dizendo aqui que vou pegar perpétua, tô pensando
em me matar hoje mesmo, na cela. Aí quis te ligar e dizer que... eu sempre amei
você. O quê? Como assim, “o número chamado não existe”, amor?
Fico feliz em me incluir entre os
que não têm a menor dúvida sobre para quem telefonariam após uma prisão repentina
a altas horas. Em ter uma pessoa extraordinária que jamais sossegou enquanto eu
não estivesse em casa, em paz e com saúde. Que está sempre cuidando do meu
bem-estar, às vezes até sem eu saber. Que, mesmo não sendo formada em Direito,
saberia exatamente o que dizer para me manter calmo e o que fazer para devolver-me
à liberdade. Alguém cujo número nem precisaria estar na agenda do meu celular,
porque o sei de cor.
-- Alô?
-- Alô, Batman? Graças a Deus que
tu tá em casa, velho, seguinte...
Cara eu li isso rsrsrsrs :-) gostei e fiquei pensando aqui pra quem eu ligaria? o.0
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