Onipotência
“O Universo é uma esfera infinita, cujo
centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum. Enfim, que a
nossa imaginação se perca nesse pensamento é o maior sinal sensível da
onipotência de Deus.”
- Blaise Pascal,
Pensieri
“What if God was one of us?”
Até onde a memória alcança é
especulação o que se tem. Nunca houve consenso sobre a época e as
circunstâncias exatas de seu surgimento. (É provável mesmo que seja anterior ou
alheio ao tempo, ao nosso conceito de tempo.) Em menino, ouvi falar de um
vilarejo da Suécia cujos habitantes não envelheciam. A alta longevidade —
convertida em imortalidade pela hiperbólica mente infantil — dos moradores de
Överkalix aliou-se a uma série de eventos misteriosos (navios que, partindo da
costa sueca, desapareciam no mar báltico; proliferação de espécies dadas por
extintas e aparecimento de outras jamais documentadas) para cravar, segundo um
grupo de antropólogos noruegueses, o vicinal país europeu como o berço daquele
a cuja vontade tudo o mais se submetia. Esses estudiosos apoiavam-se numa
suposta relação entre os fenômenos suecos e as quatro ações descritas por RØald
Undset no século XVIII para testar as habilidades de um ser hipotético que se
descobre onipotente: intervir, criar, destruir, refazer. Outras nações
apresentaram registros de acontecimentos análogos, na esperança de trazer para
seus livros de história a origem do maior evento conhecido. Enquanto o feto era
belo, não faltou quem lhe quisesse assumir a paternidade.
Quando
as manipulações em larga escala se tornaram comuns (e a inevitável
transcendência da moralidade, evidente), convencionou-se que rastrear sua
origem, física ou geográfica, era um esforço vão e dispendioso. Sentenciados à
coexistência com um Deus, cabe resignar-se ou apegar-se a frágeis esperanças,
como as que buscarei resumir a seguir.
Antes, porém, uma
observação.
Sempre intrigou-me notar certa gradação na
maturidade de suas intervenções. Não é lícito supor que um ser onipotente
prescinda de qualquer espécie de evolução? O frágil Deus bíblico, como as
temperamentais divindades gregas, não eram imperfeitos — frutos inegáveis da
imaginação humana —, não tinham sua liberdade tolhida justamente por carregarem
em si o reflexo da instabilidade a que estavam sujeitos seus criadores?
Houve,
contudo, evolução. Ou assim ele nos fez pensar. Da lua que uma noite encimou o Hemisfério
Norte iluminada por uma freqüência de cor até então inexistente (que hoje
denominam infra-sofia) às incursões simultâneas à mente de todos os homens; da
animação de conceitos abstratos à superposição de realidades, passava-se da
curiosa euforia infantil à rebeldia adolescente, da estabilidade adulta à
necessidade de reinvenção da velhice.
Limitar-me-ei
a analisar um evento representativo de cada fase, porque agradam aos muitos
seguidores de Undset tais experimentos reducionistas.
Infância
Também conhecida por Tábula Rasa de
Deus. Ignora o inatismo da onipotência. Caracterizou-se principalmente pela
invenção do que não existia. Os pintores e escultores, quando desejam
representar seres cuja existência é negada pela realidade cognoscível, jamais
conseguem atingir a originalidade em sua plenitude, posto que apenas misturem
formas de criaturas preexistentes. A transcendência de tal limitação operou-se em
vários níveis: animal (novas espécies), perceptivo (ampliação do espectro de
cores visíveis a olho nu), químico (elementos estranhos à tabela periódica)
etc. Foi acompanhada de perto por um séqüito que buscava dotá-la de
significação subjetiva. Prenúncio do apocalipse para cristãos, advento do
Messias para judeus, símbolo do descontentamento de Alá com o Ocidente para
muçulmanos. A ciência, cujo empirismo só consiste noutra forma de fé, ou crença
sem evidências, também tentou adaptar a desordem dos fatos à ordem de suas
leis. A física quântica, que então apenas engatinhava, seria bastante
apreciada, quiçá pela prestativa anarquia de sua estrutura basilar. Mas me
adianto. O primeiro embate entre Deus e a racionalidade operou-se, com farta
notoriedade, algum tempo antes. Eis um resumo do caso.
Um
senhor idoso apareceu morto numa travessa deserta de Buenos Aires. Portava,
além de um documento de identidade presumivelmente falso (pois alegava que o homem,
de nome “Hugo Dornelles”, não passava dos 22 anos de idade), o recorte de um
artigo do Clarín com data 43 anos ulterior. Seu conteúdo era confuso. Não seria
necessária perícia para constatar que o óbito se dera menos por estrangulamento
que pelos dois tiros na altura do peito. As circunstâncias do crime indicavam
ausência de premeditação, possível latrocínio. No entanto, apressadas pela
curiosidade que os pormenores incomuns da ocorrência suscitaram, as investigações
com base nas evidências coletadas (impressões digitais, pele sob as unhas da
vítima etc.) apontaram, absurdamente, um único assassino possível: o próprio
Hugo Dornelles.
Por
óbvia razão, o suicídio foi prontamente descartado. O caso evidenciou-se em
meio à estranheza de outros que se haviam tornado comuns. A ciência forense
tratou de repudiar a aura fantástica que o envolvia. Postulou que gêmeos
univitelinos (e, portanto, com o mesmo DNA) excêntricos e enfastiados com a
velhice podiam ter arquitetado um pacto de suicídio incomum, ao qual uma das
partes declinara em cima da hora. Confrontada com os sinais de violência e as
impressões digitais — que diferem mesmo entre gêmeos idênticos —, mencionaram
uma briga entre os suicidas e moldes de silicone sobre os dedos. Essa débil e
algo forçada reformulação do crime perfeito foi muito menos atraente que a
espantosa realidade.
Transcorridos cinco meses, um homem apresentou-se numa delegacia da província de Entre Ríos, confessando-se o autor daquele crime. Sua idade: 22 anos. Seu nome: Hugo Dornelles.
Transcorridos cinco meses, um homem apresentou-se numa delegacia da província de Entre Ríos, confessando-se o autor daquele crime. Sua idade: 22 anos. Seu nome: Hugo Dornelles.
Segundo o relato (em tudo
corroborado pelas evidências), Hugo voltava da casa de sua namorada — que
acabara de pedir em casamento — numa mormacenta noite de abril, quando foi
abordado por um senhor naquela travessa. O estranho — que, pela incoerência do
discurso e propensão ao choro repentino, pareceu-lhe embriagado — afirmou
conhecer tão intimamente a essência do jovem que não esperava ser perdoado por
este, pelo que viera fazer. Disse que o mais devastador dos atrasos era o da
maturidade, que só nos chegava em intensidade suficiente para enfrentar
determinada fase da vida quando esta fase já havia terminado. Por tal lógica, o
idoso esperava que também a morte representasse a conquista tardia de todas as
ferramentas que haviam sido negadas ao outro em vida, incluindo um sentido para
ela. Só então Hugo percebeu a arma apontada para seu peito. Confuso, apavorado,
tentou explicar que o estranho certamente o confundira com outra pessoa, que
nunca antes o vira. “Você me viu”, contrapôs o velho, “todas as vezes que se
olhou no espelho”. E, indicando a si mesmo, declarou que aquele arremedo era o
que a vida faria com o jovem, se ele, o velho, não tivesse voltado para
libertá-lo. Para salvá-lo, poupando-o do desgaste lento e doloroso de uma
existência que não passaria de decepções duradouras entrecortadas por fugazes
períodos de felicidade, como a débil nesga de sol infiltrando-se
intermitentemente entre nuvens carregadas, eternas.
Hugo compreendeu que
aquele louco pretendia passar por uma versão ulterior de si mesmo. Seus
argumentos seguintes condescendiam com a lógica da fantasia. Invocou a
injustiça do ato, alegando que condená-lo por escolhas que ainda não havia
tomado seria o mesmo que matar um inocente. Afirmou que precisava provar do
sofrimento, para ter certeza de que a opção apresentada era melhor. Por último,
quis repudiar o fatalismo, pois o mero surgimento do velho sem dúvida bastaria
para alterar as ramificações que o conduziriam àquela idade, tornando sua
existência mais completa, menos infeliz. Foi ouvido com a piedosa paciência dos
irredutíveis. O desfecho da luta que travaram a seguir era conhecido.
Até as perturbadoras
conclusões da polícia técnica, Hugo não depositara o menor crédito nas palavras
do velho, que matara em legítima defesa. Histérico, avisou à noiva e fugiu. Depois
raciocinou que a ordem dos acontecimentos recentes — pessoas que não
envelheciam, monstros mitológicos — podia muito bem conduzir a um futuro em que
viagens no tempo fossem possíveis, ou a interpolação de pessoas em épocas
diferentes das delas. Sentiu-se deprimido. Havia sido, a um só tempo, assassino
e vítima de um crime hediondo, e continuava vivo. Aniquilara o homem que viria
a ser, mas cujos átomos de algum modo ainda não tinham se combinado. Alguém que
só intentava poupá-lo de uma sucessão de fracassos. A ação por instinto diluiu
um pouco sua culpa. Se tencionasse realmente matá-lo, por que o velho não
atirara em silêncio, talvez pelas costas? Não podia esperar que o jovem Hugo
consentisse com o fim que insanamente lhe apresentava. Por que, então, não
retornar a um período anterior, quando Hugo era apenas um bebê e, portanto, não
ofereceria resistência? Em semanas de reflexão, entendeu que a idéia consistia em
encerrar sua biografia na melhor parte. Como se, segundo o idoso (segundo ele
próprio), aquele fosse o último dia feliz de sua vida — flutuando de enlevo ao
cruzar a travessa, porque a mulher que amava acabara de aceitar seu pedido de
casamento. Corroído pelo remorso, o jovem resolvera se entregar. Indicou o
lugar onde enterrara a arma (um modelo que ainda não constava da linha de
produção do fabricante) e cedeu amostras de DNA para a comparação com o do
corpo exumado. Tratavam-se, sim, da mesma pessoa, a quatro décadas de distância.
Muitos incautos alegaram
que Hugo deveria ser condenado unicamente pelo “ineditismo” de se poder
sentenciar um suicida por seu crime. Outros, que o direito ao auto-extermínio não
prescindia do distanciamento físico e temporal. Outros, ainda, que a condenação
deveria ser a mesma imputada a quem comete um homicídio comum, posto que as
células do corpo humano se renovem inteiramente a cada sete anos e, portanto,
estruturalmente os dois Hugos eram pessoas distintas.
A absolvição
fundamentou-se em grande parte na atenuante da legítima defesa. Foi a primeira
intersecção entre o poder Supermo e um dos três poderes instituídos pelo homem.
Adolescência
A experimentação
deslumbrada deu lugar à anarquia de feições terroristas. Foi nesta fase que as
últimas seitas que o veneravam ou se opunham à sua existência desapareceram.
Gradativamente, a humanidade se dava conta de que o menos pernicioso era viver a despeito daquela onipresença,
aceitá-la como quem aceita uma versão moribunda do sol, que pode continuar
permitindo a vida em sua órbita ou explodir repentinamente e eliminá-la.
A
alteração da memória coletiva tornou-se constante. Os livros de história
anoiteciam como o registro mais ou menos fiel dos acontecimentos que haviam
trazido a civilização ao ponto em que estava e amanheciam como ficções
estapafúrdias das quais ninguém se lembrava, e era impossível saber se a
alteração se dera nas páginas dos livros ou na memória dos homens. Não havia
quem consentisse, sem o menor vestígio de dúvida, sobre haver lutado na Segunda
Guerra, não havia quem consentisse sobre ter
havido uma Segunda Guerra. Ou o Holocausto. Ou o eclipse da semana
anterior.
Países
inteiros desapareciam, e voltavam a aparecer reconfigurados (um estado em cada
ponto cardeal do globo, com seus habitantes falando idiomas desconhecidos, ou
transformados em estátuas). Vez por outra ressurgiam desertos, ou no fundo do
oceano mais remoto... Um decreto inaudito, com duração de cinco anos, estipulou
que toda pessoa que falecesse a partir daquela data teria as menções gráficas a
ela apagadas na terra. Não se soube a finalidade desse experimento — como o de
inúmeros outros —, que significou meia década sem obituários, laudos
post-mortem e inscrições sepulcrais (o “qüinqüênio das lápides lisas”, como
definiu um escritor). Lembro-me de pegar o metrô certa manhã. Uma mulher
sentou-se no banco à minha frente. Ao prender os cabelos num coque, deixou à
mostra a nuca muito branca, onde pude ler os seguintes dizeres, tatuados em
belíssima fonte recurva, sombreada: “Augusto e Mateus, meus dois amores”. Passei
um terço da viagem encantado com aquela demonstração pública de afeto, e presenciei
(horrorizado, estupefato) o instante preciso em que duas palavras sumiram,
deixando a sentença terrivelmente incompleta:
“ e
, meus dois amores”
Compreendi, devastado, triste, que em algum
lugar acima de nós o marido e o filho daquela desconhecida haviam acabado de
morrer, e que eu não tinha o direito de ter consciência desse fato antes dela,
uma vez que, para mim, ele pouco ou nada significava. Jamais odiei tanto a
nossa versão do sol moribundo.
*
Muitos enxergaram a
criação dos Pontos Cegos como uma resposta ou desafio às crescentes
manifestações de crença num Deus além dele — num ser cuja onipotência contivesse
e anulasse a sua, e cujas ações se guiassem unilateralmente pelo bem. Esses
lugares estratégicos, de tamanho variável, identificáveis como regiões de
sombra sem obstrução da luz do sol, durante o dia, e iluminadas sem qualquer
fonte visível, à noite, eram, nas palavras do comunicado transmitido em sonhos
e simultaneamente a toda humanidade, “o limite da jurisdição de seu Deus. Ides
ali, pois, para fugirdes à onisciência que tanto temestes. Nada que fizerdes ou
pensardes em seu interior poderá ser visto, intuído ou julgado por Deus, o
Demônio ou quaisquer entidades idealizadas entre os dois extremos. Ali, sois
totalmente imunes à vigilância. Quando sairdes, tudo o que houveres feito lá
dentro ter-se-á apagado de tua memória e da de teus semelhantes, para que Deus
não possa perscrutá-las e conhecer os segredos de teu coração.”
Ao absurdo da proposição
adveio, naturalmente, o esvaziamento das cidades, a migração massiva para os
Pontos Cegos. Os poucos que declinaram acreditavam-se únicos merecedores do Paraíso,
pois o mero dirigir-se a um local supostamente oculto aos olhos de Deus
pressupunha intenção de desobedecê-Lo. Calavam-se, contudo, quanto aos que já
residiam naquelas terras antes da ocultação, ou que tencionavam, na verdade,
escapar à onisciência do próprio idealizador do bloqueio. De minha parte, senti
profunda compaixão pelas pessoas crentes num Deus justo que haviam sido transportadas
contra a vontade aos pontos cegos. Imaginei-as diante do Criador, no fim de
tudo, sem poder ser condenadas ou absolvidas, pois uma parte da vida jazia fora
do alcance tanto de réus quanto do Juiz, e esta parte poderia conter imperdoável
desobediência. A dúvida eterna impediria a aplicação da única justiça tida por
infalível.
Estive num Ponto Cego ao
norte de Interlaken. Decerto não me orgulharia de meus atos em seu interior, se
deles tivesse a mais remota lembrança. Mas gosto de pensar que tais espaços
eram menos Gomorras invulneráveis que refúgios para a reflexão livre de
policiamento mental, embora nunca se tenha dito que todas as onisciências, sem
exceção, fossem barradas dentro de seus limites.
Muitos entraram, menos de
um terço saiu, e várias décadas depois não se podia encontrar uma única região
de sombra sem obstrução do sol ou iluminada sem fonte observável.
Amadurecimento/Velhice
Não é possível se
acostumar à convivência com um Deus, a menos que ele assim deseje. Está-se
sempre na iminência de ter a mente vasculhada do primeiro ao último pensamento.
De ser inundado pela ignominiosa compreensão de tudo. De agir contra a vontade,
ou de acordo com uma vontade que você jamais saberá se germinou em sua alma ou
foi nela implantada. A onipotência alheia torna impraticáveis os medíocres
poderes humanos, seus direitos e deveres. Todas as leis subentendem uma exceção
que as anula — “salvo se obedecendo a ordem Superior”. Assiste-se a notícias
sobre um criminoso que eviscerou duzentas crianças e já não se tende ao
julgamento imediato. Porque o assassino pode ter sido obrigado àquilo, ainda
que diga o contrário — pois pode ter sido levado a dizer o contrário, a julgar ter
agido sem influência. Porque o crime está longe de ser irreversível, como já o
comprovaram as infindáveis ressurreições, inserções de uma época em outra,
supressões de fatos e suas memórias. Nenhum ato potencial está isento de influência.
Você teme que o ser humano por quem acaba de se apaixonar — e com o qual
descobriu inúmeras afinidades — não passe da personificação de suas
idealizações românticas, tornado real por uma ordem secreta, programado para
corresponder às suas expectativas (para dar-lhe a ilusão de completude, de
felicidade) e que só existe nos momentos em que você o vê. O livre-arbítrio
sucumbe à impossibilidade de saber se se agiu por livre-arbítrio. Nada resiste
incólume.
Dada a fragilização da
humanidade, é compreensível o apego desmedido a patéticas esperanças retóricas.
Para justificar a falibilidade e inevitável ruína daquele poder, falou-se muito
no paradoxo da onipotência. Em Cowan, em Bergson. Nas coisas
além das possibilidades de Deus. Exumaram a feitura de uma rocha tão pesada que
nem Ele conseguiria mover. Inferiram da criação dos Pontos Cegos que somente
uma onipotência era capaz de restringir o campo de ação da outra, mas que,
coexistindo ambas, nenhuma seria ilimitada em seu poder. Concluíram, pois, que,
das coisas que aquele Deus amoral era impotente, nenhuma devia humilhá-lo mais
que a impossibilidade de criar outro Deus idêntico ou cujo poder o superasse. Uma
manifestação a nível mundial foi organizada. Usavam máscaras de Feuerbach, refutavam de
antemão falácias lingüísticas, alegações de que a lógica dos homens era
limitada, incapaz de abarcar a complexidade do pensamento divino. Sob a desoladora bandeia do desafio às
fronteiras da vontade Superior, pretendiam esconder o grito de que era fácil
reinar sem uma oposição à altura. Desejavam ardentemente a criação de uma
nêmesis.
A
resposta não tardou, segundo nossa concepção do tempo. Pediram-lhe outro Deus,
ele deu-lhes bilhões.
Faz
sentido que, durante o sono, o descanso da mente, a parte de nosso cérebro que
mais trabalhe na vigília esteja desligada. O córtex pré-frontal está
diretamente relacionado ao pensamento racional. Devido à sua quase total
inatividade quando dormimos, é extremamente difícil pensar racionalmente
durante um sonho, estranhar a abolição das leis físicas ou a mudança constante
de rostos e de cenários. Por isso é tão trabalhoso desconfiar que estamos
sonhando enquanto o sonho dura.
Dias
após a manifestação mundial, notou-se uma mudança comum nos relatos oníricos
durante as refeições matinais. Um contingente expressivo da humanidade alegava
ter conseguido alcançar, com relativa facilidade, a rara experiência do sonho
lúcido. Estudos posteriores comprovariam a alteração no funcionamento do
cérebro humano: a atividade das áreas desligadas era, agora, retomada tão logo
começava o estágio R.E.M. do sono (onde se dá a maioria dos sonhos) sem que a
pessoa despertasse. Entender que se estava vivendo uma experiência onírica não
era, então, mais dificultoso que intuir o quadrado do número dois. Uma casa
flutuante, por exemplo, fornecia uma pista (porque, desde o advento do
onipotente, tal disparate era perfeitamente verossímil na vida real), e a
tentativa bem-sucedida de trazê-la ao solo com uma simples ordem mental
comprovava a irrealidade daquele mundo. Que, a partir de então, o sonhador
podia manipular como bem lhe aprouvesse, à
semelhança exata de seu correspondente no mundo real.
A
noite passou a ser, de longe, o trecho mais esperado das vinte e quatro horas
que compunham o dia. A indústria de sedativos lucrou como nunca, mas a
produtividade mundial decaiu. Convencionou-se acrescer duas horas do tempo
diário de trabalho e duas do de lazer às oito que integravam o intervalo
dedicado ao sono, ficando o dia, portanto, dividido em 12 horas de sono e outras
tantas de vigília. Era inevitável que essa repartição exata estreitasse a
dúvida metafísica sobre o que tornava o sonho menos real que a realidade, além
de avalizar a inversão dos termos e seus significados.
Ali,
cada sonhador era o Deus de seu próprio universo, cada ser humano conhecia na
prática o que era ser onipotente. Construíam cidades, fundavam países, povoavam
continentes, exploravam mares, queimavam florestas, inundavam desertos, criavam
amantes, amigos, irmãos, reviam pessoas já mortas, implodiam estrelas, escapavam
ao sumidouro resultante dessa implosão, nasciam, viviam, morriam, acordavam. E
era como se a realidade não passasse então de uma pausa da qual o corpo físico
necessitava entre dois sonhos.
Duas
conjecturas nascidas nessa época ainda me encantam. A primeira relaciona-se à
antiga dificuldade em descobrir a natureza irreal do sonho, enquanto este
durasse. Sabe-se que isto só acontecia porque nossa maior ferramenta
investigativa se encontrava, então, inacessível: a racionalidade. Uma vez
alcançada, assumiu-se o controle total. Por analogia, não haveria também uma
parte inacessível da mente desperta que concederia, a quem pudesse ativá-la,
poder ilimitado? O ser que alterara o funcionamento de nosso cérebro não teria
obtido suas faculdades supremas assim?
Também
se dizia que aquele que morresse durante um sonho lúcido reinaria supremo em
seu universo particular para sempre. E se a realidade fosse isso, as formas
oníricas eternizadas de alguém que morreu enquanto sonhava — e sabia que sonhava? E se não passarmos de
simulacros, de idéias na mente da onipotência que nos projeta e, de algum modo,
tiraniza?
Morte?
Dos que tiveram a vida prolongada por
algum capricho de Deus, poucos são os que, como eu, não duvidam que ele tenha
existido. Oitocentos anos de ausência são capazes de suprimir até a maior
evidência de suas intervenções da memória das gerações — que, mesmo quando as
admitem, concedem-lhe origens distintas. Novos postulados ópticos explicam a
cor da lua. O neodarwinismo se encarrega das espécies que
encantaram biólogos de outrora. Fragmentos de asteróides justificam os metais alheios à mineralogia conhecida. Nossa longevidade deve ser-lhes mais complicada, mas não me interessei em saber como a explicam — se recorrendo à miscigenação de Överkalix ou a ligações com a linhagem de Matusalém. Ceder-nos imortalidade antes de retirar-se soa como uma promessa de retorno, porque há a necessidade de testemunhas de sua primeira passagem por este universo, do qual nunca nutri esperanças de que ele jamais se enfadasse. Ou talvez — e penso muito nisso — seja uma forma de assegurar que, ao cabo da eternidade, nos irmanemos na onipotência, pois não há hipótese que não se converta em fato quando se dispõe de todos os instantes do tempo.
encantaram biólogos de outrora. Fragmentos de asteróides justificam os metais alheios à mineralogia conhecida. Nossa longevidade deve ser-lhes mais complicada, mas não me interessei em saber como a explicam — se recorrendo à miscigenação de Överkalix ou a ligações com a linhagem de Matusalém. Ceder-nos imortalidade antes de retirar-se soa como uma promessa de retorno, porque há a necessidade de testemunhas de sua primeira passagem por este universo, do qual nunca nutri esperanças de que ele jamais se enfadasse. Ou talvez — e penso muito nisso — seja uma forma de assegurar que, ao cabo da eternidade, nos irmanemos na onipotência, pois não há hipótese que não se converta em fato quando se dispõe de todos os instantes do tempo.
Que
eu me lembre, Hugo Dornelles faleceu vítima de uma septicemia, 15 anos depois
de entregar-se por ter matado a si mesmo. Descontada uma possível intervenção
Superior, isto parece provar a falácia do fatalismo, pois alterar um fato
pretérito cria um segundo futuro, sem que o primeiro perca lugar no espaço. Há,
portanto, várias realidades potenciais, como a vibração das cordas de um
instrumento prestes a ser tocado. Numa delas sou imortal, noutra nasci morto.
Creio que Ele seja o denominador comum a todas, o oceano insondável no qual
todos os rios se originam e para o qual inexoravelmente voltarão, no fim.
Conquanto os séculos não
tenham embotado na mente os temores da convivência com esse Deus além da moral,
meu espírito anseia por tal reencontro.
Post-scriptum
Na
era dos sonhos lúcidos, muitos se cansavam do poder absoluto. A dilatação do
tempo onírico tornava o expediente de administrar o próprio universo demasiado
enfadonho — e ordenar “que o enfado se acabe” não menos entediante.
Influenciados pelo experimento de Rawls, alguns sonhadores adotavam, então, uma
estratégia sub-rogatória: construíam minuciosamente um mundo no qual se
inseriam, programados para esquecer tudo, abdicando inclusive da própria
onipotência — que seria recuperada num dado instante ou sob determinada
condição. Ao abrirem os olhos, não faziam idéia de que ainda se encontravam no
universo que eles mesmos haviam criado, e permaneciam ignorantes sobre sua
capacidade de mudar tudo (muitas vezes submetendo-se a humilhações infligidas
por seus próprios simulacros), até deparar com o “sinal” combinado — e
finalmente recuperá-la. A essa breve pausa do poder chamavam “realidade”.
Pensando
nisso, fundei uma seita (que não prosperou) que postulava um destino similar à
nossa desaparecida divindade. A supressão da cor verde do espectro visível ao
olho humano foi um de seus últimos atos cognoscíveis (embora os estudiosos de
hoje afirmem que nunca fomos capazes de enxergá-la, que essa freqüência de cor
nem existe, que as folhas das árvores sempre foram amareladas). Viu-se em tal
atitude uma correspondência com um de seus primeiros atos cognoscíveis, a
apresentação do infra-sofia como a nova cor da lua. Uma simples troca: dava-nos
uma tonalidade com a mão direita e tirava-nos outra com a esquerda. Eu, porém,
imaginei que aquilo devia ser o Sinal. Inconsciente, Deus agora se distraía
como um de nós, mas recuperaria sua divindade em breve ou muito tempo. Um dia
ele daria com a cor verde eivando alguma superfície remota e se lembraria de
tudo. De sua condição não-humana. Da própria onipotência.
Por
décadas refleti sobre que superfície seria essa, e como torná-la visível para o
maior número de pessoas que pudesse. O aparente fracasso não me demoveu da
empreitada.
Pois
se há uma coisa que nem mais mil anos extinguirão de minha memória, é que o verde
era a cor da esperança.
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