Ghost Ghost-Writer


Eu sempre ouvi dizer que hotéis de beira de estrada são os lugares mais inspiradores para quem escreve histórias de terror (qualquer coisa na misteriosa vida pregressa de certos hóspedes, acho, e que só permanece misteriosa graças ao costume suspeito de não exigir identificação), mas só então resolvera experimentar. Meu editor telefonara semanas antes cobrando originais e “amigável” não estava entre os adjetivos que poderiam descrever a conversa.
— Essa onda de thrillers ditados por espíritos está nos levando à falência! — dissera ele, em tom de quem cogita abandonar o barco. — E o pior é que, nas sessões de mesa branca organizadas lá na sede, nenhum deles aceita publicar conosco!
— Entendo — respondi, solidário. — Mas vocês já pensaram em tirar a cláusula sobre o contrato ser vitalício? Talvez isso os esteja afugentan...
— Mortalício.
— O quê?
— O contrato, no caso dos espíritos, é mortalício. E não podemos mudar, é a nossa única garantia de que o gado não procurará outro pasto quando engordar um pouco.
Por “gado”, “outro pasto” e “engordar um pouco” ele se referia, respectivamente, à “classe escritora no geral”, “uma editora maior” e “virar best-seller”. Essa posição meio hitchcockiana em relação aos profissionais da minha área me irritava, e acabamos discutindo outra vez. Entre ameaças mútuas de defenestração, ele encerrara a ligação prometendo que se os documentos não estivessem em sua mesa dali a no máximo oito dias, a próxima coisa que eu redigiria na vida seria meu próprio epitáfio. E ia ter de pagar a revisão sozinho.
            Não me deixei abalar. Agendei uma reunião com os burocratas da empresa, chefes de meu chefe, para explicar-lhes a necessidade de encontrar outra Dubai das idéias, metáfora para aqueles lugares onde a ficção é latente, e as histórias, ainda que em estágio embrionário, só precisam de rala escavação para brotar feito petróleo de solo árabe. Desde que entrara no ramo, minha Dubai fora o Cemitério de Santa Mônica, no centro, conquanto ultimamente não me sentisse mais à vontade para criar ali. “Esses túmulos moderninhos são frios demais, quase estéreis”, esclareci, bastante convincente. Era estranho pensar que durante tanto tempo havia extraído meu petróleo particular de gente morta e enterrada, elevando o conceito de combustível fóssil a um nível de humanismo com que sua versão tradicional só poderia sonhar. Num último esforço para salvar a antiga fonte, eu até cogitara transformar tal argumento num romance de realismo mágico, mas desisti por achar que a idéia era óbvia demais para ser original. 
Com o adiantamento no bolso e os prazos menos apertados, chegava a hora de pesquisar. Saber que tipo de lugar estava procurando foi essencial para conseguir a aprovação dos burocratas, que, confesso, não havia imaginado tão fácil. Velocidade similar teve a busca. Numa aparente alusão à Brasília, minhas fontes pareciam mancomunadas — lista telefônica, amigos e internet foram aos poucos apontando, como na bússola, para o norte: Hotel Miramato.
Situado no quilômetro 6 da BR 665 — o que fazia os teóricos da conspiração reproduzirem o “Uuuhhh!” que se segue à bola que raspa o travessão —, o hotel era um prediozinho esquecido num vasto tabuleiro de Banco Imobiliário. Ficara famoso quando Roger Morse, jovem poeta sofrendo de depressão e frustrado com a crítica a seu primeiro livro, dera um tiro na boca no hall de entrada, antes mesmo de pagar a diária. Como fosse fugitivo da polícia (atropelara duas adolescentes enquanto recitava trechos da Ilíada, dirigindo bêbado em sua jornada para matar todos os críticos literários do país), a notícia ganhara os jornais, e em pouco tempo o hotel convertera-se na Meca dos autores de terror com bloqueio criativo, dispostos a incorporar o espírito do colega falecido e produzir obras-primas do suspense gótico. À época, eu não soubera de nada por estar em Paris investigando originais secretos de Georges Perec para uma exegese definitiva. Ou pelo menos era o que se pensava na editora.
Todos que se hospedavam no Miramato com pretensões literárias, entretanto, saíam de lá misteriosamente desiludidos, o olhar vago, direto para o bar defronte, sugestivamente batizado de “Pronto, pronto”. Por motivos que preferiam esconder, nunca conseguiam terminar suas obras no local: “Estava indo tudo bem e, de repente, puf!” Quando perguntados sobre o significado exato de “puf!”, eram lacônicos, prometendo apenas jamais botar os pés ali outra vez. Alguns simplesmente começavam a chorar.
Eu, pelo visto, seria uma gloriosa exceção à regra. Não só sentia-me extremamente prolífico naquele quarto como concluíra, em tempo recorde, 12 dos 13 contos que pretendia compilar num volume intitulado “À Sombra do Cedro”: três dias. O quadro sobre a cabeceira da cama, por exemplo, inspirara “Por quem choras?”, sobre a suposta maldição envolvendo as 27 telas pintadas por Giovanni Brangolin entre os anos 70 e 80, retratando rostos perturbadores de crianças chorando. Já os corações trespassados que ilustravam o papel de parede serviram de mote para “As Vísceras”, a respeito de um homem bom e pacífico que começa a apresentar comportamento homicida após receber órgãos de um serial killer durante um transplante — “lembrai-vos de que, desde o Dilúvio, há uma demanda inesgotável por assassinos em série”, dizia um mandamento do gênero. E, finalmente, era ao pinheiro visível da única janela do quarto que eu devia o estalo que resultara no conto título da coletânea, narrando a laboriosa derrubada de uma castanheira solitária no centro de uma enorme charneca, em cuja sombra já haviam perecido boiadas inteiras, homens e até crianças, todos eletrocutados por raios ao buscarem abrigo do temporal iminente no local menos apropriado possível.
É, os espíritos escritores que se cuidassem...
Até ali, porém, o processo de criação não diferia muito do que costumava usar em Santa Mônica, a antiga Dubai: eram apenas aspectos triviais do ambiente circundante ganhando vida graças ao surto. A brainstorm, nesse caso, nada tinha a ver com a tão alardeada “aura sobrenatural” que impregnava o hotel. Reparando nisto (e também porque precisava urgentemente descansar os dedos e o cérebro), resolvi dar uma pausa. Queria que o último conto fosse especial. Salvei tudo o que digitara até ali num pendrive e fechei o notebook.
Liguei o abajur e deitei-me na cama, embora não pretendesse dormir. Estava decidido a esperar algum sinal vindo genuinamente de além-túmulo, tanto para encerrar o livro em tom documental quanto porque queria triunfar onde meus colegas haviam falhado, dando voz ao espírito perturbado de Roger, calado eterna, precoce e covardemente pela maldita crítica. Fiquei me perguntando se teria o mesmo efeito ofensivo comparar críticos a eunucos num harém e a diabéticos numa confeitaria.
Então a luz do abajur começou a piscar. A princípio tentei ignorar, mas aquilo me incomodou. Dei tapinhas leves na proteção. O problema persistiu. Como ainda não tivera minha epifania e a lâmpada no teto fosse forte demais para ser encarada daquele ângulo, relatei a falha ao serviço de quarto, pelo telefone (serviço de quarto num hotel de beira de estrada é meio como uma máquina de coca-cola em pleno Saara). Em minutos uma moça simpática, de uniforme azul todo rendado, apareceu com uma lâmpada nova, substituindo rapidamente a defeituosa. “Isso acontece muito com os escritores, nesse hotel”, comentou gratuitamente. Como não havia preenchido nenhum questionário na recepção, ficou implícito que tenho “escritor” tatuado na testa. Ela testou o aparelho, que voltara ao normal. Desculpou-se em nome do hotel e saiu.
Entregava-me novamente à digressão quando a perturbação luminosa voltou. “Mas que saco!” Com o braço a meio caminho do telefone na mesa-de-cabeceira, me detive, reparando numa coisa que de início julguei ser fruto de minha mente sobrecarregada: a oscilação agora parecia obedecer a um padrão fixo, com a lâmpada alternando de “acesa” para “apagada” ora bem depressa, ora mais devagar, repetindo-se o processo a intervalos regulares. Estranho. Esperei a ocorrência completar a quarta rodada sem qualquer alteração. Se não fosse ridículo, diria que o abajur estava tentando enviar uma mensagem por...
— Código Morse! — e saltei da cama como quem encontra uma cobra escondida sob o edredom.
Jesus, como não pensara nisso antes?! Que melhor jeito para Roger se comunicar com os vivos senão através do sistema que levava seu sobrenome? “Acontece bastante com os escritores”, dissera a empregada. Só podia ser isso! Não entendendo a “língua” de que o espírito se valia para conceder-lhes a tão almejada inspiração, os ficcionistas acabavam desistindo de terminar suas obras no hotel!
Procurei papel e caneta na gaveta da cômoda. Por sorte, conhecia o código desde a 7ª série, quando a proliferação dos monitores de classe alcagüetes obrigara o resto da turma a buscar formas alternativas de traficar cola durante os exames. E o diretor dizendo que a gente devia se envergonhar...
O abajur seguia repetindo sua mensagem intermitentemente. Com mãos trêmulas e incapaz de manter os pêlos da nuca paralelos a ela, comecei a converter os sinais luminosos em pontos e traços. Ao concluir a tarefa, a oscilação parou de repente, como se a lâmpada tivesse enfim decidido permanecer acesa. No papel, meu mapa da mina cifrado cintilava:
Jó 8:19

“Jó 8:19” Agora que o calafrio cessara, eu voltava a ser inundado pelo fascínio que me fizera optar por aquele gênero literário. Sim, o terror. Poucas emoções são tão representativas da condição humana quanto o medo da morte, ou do que nos espera além dela. Pela primeira vez em muito tempo, desejei não ser agnóstico e carregar uma bíblia na mochila. Convenientemente, o hotel possuía um pequeno acervo de livros no térreo, especialmente reunido, segundo li na internet, para eventuais pesquisas dos profissionais que mais lhe rendiam lucros. Excitado, tranquei tudo antes de descer. Agora o último conto prometia ser o melhor, com provável imersão total do autor na trama. Talvez até me obrigasse a rebatizar a coletânea e acrescentar um subtítulo chamativo: “mais ou menos baseado em fatos reais”...
Conhecia vagamente o livro de Jó. Era o sujeito a cuja história os fiéis recorriam sempre que confrontados por aquela pergunta espinhosa, a “Se Deus é incondicionalmente bom, por que coisas terríveis acontecem a gente inocente?” Enquanto descia as escadas de três em três degraus, imaginava que, dependendo do que fosse encontrar em 8:19, haveria mil e um jeitos de encaixar o argumento da aposta de Deus com o Diabo num conto escatológico, quem sabe mesmo num romance à parte. Ou aquilo era apenas o ponto de partida para uma frenética caça-ao-tesouro? Tanto melhor!
Não foi difícil encontrar a bíblia na minguada coleção do Miramato. A edição clássica, encadernada em couro marrom e fechada a zíper, destacava-se das obras surradas como uma ervilha boa numa vagem apodrecida. A tremedeira reassumindo o controle das mãos, folheei ainda de pé até encontrar o trecho. Li-o aos sussurros, temendo repartir minha glória com qualquer outro hóspede:

“Eis onde termina teu destino,
mas outros como tu germinarão do solo.”

Reli a passagem cinco vezes sem entender. Parecia a reviravolta de um thriller policial que fizera sucesso há alguns anos. E, como no tal filme, o sentido da mensagem só tornou-se cristalino na sexta tentativa. A compreensão cedeu lugar à raiva, que, por sua vez, foi substituída pelo desespero: saí em disparada rumo ao quarto, rezando para que houvesse cometido um terrível engano. Devo ter derrubado umas duas camareiras no caminho.
Infelizmente, como a maioria das primeiras intuições, a minha se revelou acertada — o pendrive e o notebook ainda estavam lá, mas todo o esforço intelectual dos últimos três dias simplesmente desaparecera. Não adiantou pressionar Ctrl+Z até os dedos calejarem.
Nada de contos.
Nada de textos.
Puf!
***

Sentei-me com certa dificuldade ao balcão da taberna defronte ao Miramato. Não entendi a pergunta do barman.
— Como assim, “a de sempre”? Eu nunca vim aqui.
— Não estou falando de bebida — esclareceu ele. — A história de sempre. Veio ao hotel atraído pela promessa de inspiração fácil, teve um surto criativo que o fez escrever três quartos do livro em tempo recorde, o espírito do Morse o atraiu para longe do computador, máquina de escrever ou valise cheia de originais e levou todo o seu trabalho embora?
O olhar que lhe lancei devia encapsular toda a desconfiança do universo.
— Quem te contou...
— Olhe em volta, amigo — cortou ele, sorrindo. — Isso aqui está cheio de gente como você.
Era verdade. Um autor frustrado reconhece outros, quando os vê. Olheiras profundas, citações com o pronome no lugar errado, a expressão melancólica de quem chegou a sentir o gosto do Nobel — um Jabutizinho que fosse! — na ponta da língua. Como tanta gente culta podia ter sido passada para trás pelo maldito espírito de um jovem de quem um dia havia sentido pena?
— É o golpe perfeito, não? — prosseguiu o barman. — Como, dentro do hotel, vocês costumam escrever tudo de uma só tacada, não têm tempo de registrar a obra, inviabilizando processos futuros por plágio. O que me revolta, rapaz, é saber que esse filho-da-mãe se matou por causa da crítica e vem descontar nos próprios colegas de profissão!
Aí eu me indignei.
— E por que ninguém nos avisa antes, cacete?!
O barman sorriu.
— Sinceramente: você daria bola?
Não respondi.
            — Mas relaxe, que a tendência é piorar. Aliás, seu original era de contos ou romance?
— Contos.
— Então vai acontecer depressa. Ele costuma demorar com os romances, tem de bolar um final convincente etc.
O que vai acontecer depressa?
O empregado fez cara de médico que vai anunciar morte na família alheia.
— Daqui a dois meses, no máximo, você vai entrar numa livraria e encontrar a sua obra publicada com o seguinte adendo: “Ditado pelo espírito de fulano de tal”, e pensará que esse fulano de tal é um pseudônimo inventado pelo próprio Morse. Mas não é. É o nome do espírito para o qual o espírito do Roger vendeu o seu original.
— Ent-tão o Roger é...
— Um ghost ghost-writer, exatamente. São dele, por assim dizer, os thrillers de suspense que andam fazendo tanto sucesso ultimamente.
Pensei em dar um soco no balcão, subir-lhe em cima e convocar todos ali para processarmos os espíritos por falsidade ideológica, formação de quadrilha e plágio, mas desisti: soava absurdo até na minha mente. Sem saída, caí no choro.
— Pronto, pronto — consolou o barman, fazendo propaganda involuntária.

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