Besouro Virado





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Na volta da escola, seu filho solta a sua mão abruptamente e se agacha diante de algo caído na calçada.
— Olha, pai! Um besouro virado!
“Pronto”, você pensa, prendendo a respiração. Finalmente conhecerá a índole do guri. Saberá por conta própria se os bilhetes de professores reclamando de sua truculência com os colegas de séries inferiores — “o Betinho da 1ª B tem até marca de mordida no braço, o senhor sabia?” — têm fundamento ou não passam de perseguição acadêmica, como a que você mesmo sofreu na faculdade. A reação de uma criança a um besouro virado (carapaça tocando o chão sujo, asas inutilizadas, pernas minúsculas agitando-se num bailado constrangedoramente indefeso) é que é a única questão filosófica, ao contrário do que disse Camus. Daí se depreende todo o resto, escrevem os especialistas. Um esmagamento displicente com o pé pode significar de psicopatia a pendor ao despotismo. (Se tiver sorte, apenas distração.) Já o esmagamento requintado, com torcedelas deliberadas, expressão facial imersa naquele tipo de nojo prazeroso, pressupõe um sadismo de horrorizar Josef Mengele. Continuar o caminho sem se deter quer dizer que ele provavelmente também não se preocupará em conseguir-lhe vaga no melhor asilo da região, quando você começar a reclamar da coluna. 
O besouro virado é uma alegoria do desafeto firmemente seguro entre os braços de nossos capangas, o abdômen implorando por um soco. Ou dois, ou dez. Renunciar ao homicídio desses seres é renunciar à nossa própria bestialidade, é resgatar valores caros aos grandes pacifistas da História. Desvirar o besouro, então, quase o ombreia com Jesus Cristo, guardadas as proporções históricas. Desvirar besouros é a segunda maior demonstração de nobreza já documentada, só perdendo para o “dai a outra face”, que deixar o inseto nos picar já é demais.
O guri examina-o de todos os ângulos. “Pelo menos não ficou indiferente nem correu”, você se consola em pensamento, conquanto mantenha a respiração suspensa. Ele leva a mão direita até o besouro. Vai desvirá-lo! Por Deus, você sabia! No imo do coração, tinha certeza de que o moleque não fazia jus aos relatos professorais! Tudo inveja. Inveja por ele ser um pacifista. Por tirar as melhores notas. Por abrir mão de seus instintos agressivos infantis em nome do bom convívio em sociedade. Inveja por... por...
— Ei, tira isso da boca, guri!
Mas é tarde. Ele já engoliu.
— Azedo — diz, com uma careta arrepiada.

Vocês fazem o restante do trajeto em silêncio. Embora não a tenha visto, a marca de mordida no braço do Betinho fica cada vez mais nítida em sua mente. Você busca conforto no fato de os especialistas não terem escrito nada sobre canibalismo.

Comentários

  1. HaHA, Muito legal, já sou seu fã cara, sempre gostei dos teus textos.
    Parabéns, vc é um ótimo escritor.
    Adorei o conto, tinha lido na comunidade, mas não quis subir o tópico lá, porque já tinha muitos comentários, mas não queria deixar de te parabenizar. To seguindo teu blog, agora vou ler sempre.
    Abraço!

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  2. Haha!

    Sei não, Simone.

    É uma honra ser lido e (positivamente) comentado por uma cronista do teu calibre.

    Imensamente grato!


    Valeu, Pedrão!

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