Saudosos S/A

Eu envelheço, eu envelheço.

O saudosismo me enreda em seus braços de mármore. Acabo de descobrir que o substantivo “consolo” ganhou conotação de sacanagem. Com o advento das Sex Shops, “Passei a noite consolando minha cunhada...” é uma frase que não se consegue mais pronunciar numa roda de amigos sem que se perceba um ligeiro ar de constrangimento por parte dos presentes, como se a gente houvesse acabado de revelar certa inclinação à necrofilia. E, caso a namorada esteja junto, ainda corremos o risco de levar um chute por baixo da mesa, para aprendermos a acompanhar a evolução etimológica das coisas. Foi o mesmo com o verbo meter, que antigamente, segundo o Aurélio, era apenas o “ato de colocar, pôr, introduzir” e derivados. Hoje, a última significação possível já dá uma idéia do quão mudados estão os tempos: “você-sabe-o-quê”.


O que deu errado, no meu caso, foi o excesso de metafísica. Na escola, enquanto as outras crianças brincavam de milícia e ladrão, meninos-pegam-meninas (numa época em que “pegar” também era um verbo virgem) e ET - Cétera, eu enchia as professoras com perguntas do tipo “Se a cenoura é mais laranja que a laranja, por que a cor não se chama ‘cenoura’ em vez de ‘laranja’?” e “A Dialética de Kant me parece precipitada enquanto objeto de análise da Teoria das Lentes e... A senhora tem namorado?”. Fui o último da classe a descobrir o verdadeiro motivo da freqüência com que alguns alunos chamavam a professora de Estudos Sociais (lembra, Estudos Sociais?) até sua carteira. Na verdade eram dois motivos, cheios de silicone.


O que aconteceu com os cachorros-quentes de 1 real? Que fim levou a turma da Caverna do Dragão? O Mestre dos Magos era mesmo o Satanás travestido de anão? Atualmente refrigerante custando menos de 3 reais é soda cáustica. Biotônico Fontoura. Pelo menos Toddynho segue sendo bebida de rico e o azeite , tempero de milionário.


Saudades do dia em que encontrei um daqueles lápis verdes poligonais sob a bancada da cantina, na entrada em fila para a sala e gritei:


— Olha, mãe! Achei um lápis novinho!

— Tudo bem, guarda e entra pra sala.

— É daqueles maleáveis, olha só!

— Cuidado, guri, vai quebrar isso aí...

— Nada! Ele é bem resistente, quer ver...

E o “CRECK!” só não foi sucedido por um cascudo porque o lápis não era meu mesmo. Hoje as coisas estão tão modernas que as canetas já vêm quebradas de fábrica, tirando-nos a oportunidade de impressionar a genitora com nossa força descomunal.


E as modinhas? Ah, as modinhas... Tazos, álbuns do campeonato brasileiro 97 (“Roubaram o meu Jardel, diretora!”), moedas raras, bate-bate (“que braço inchado é esse, garoto?”), bolas de gude. Uma vez, olhando contra a luz, eu cismei que havia uma aranha radioativa dentro de uma bola de gude enorme do meu irmão. Escondido dele, peguei o martelo do meu pai e quebrei a esfera, o veneno já na outra mão, pronto para eliminar aquela ameaça à saúde da vizinhança. Quando me perguntaram, cheios de sarcasmo, segurando o Thiago para não me bater, o que acontecera com a aranha, eu disse:


— Ela fugiu! Ela fugiu!


E os ioiôs de marcas de refrigerante?! A gente começava pelas classes mais baixas: Simba, Tupi, Gut-Gut, Guaraná Jesus ou RC Cola. Os torneios de ioiô tinham de tudo, até meninas. Ganhava quem conseguisse imitar com maior precisão as manobras daquele episódio do Chaves, em que o Seu Madruga contrata uma dupla de profissionais do brinquedo. O ápice do jogo era tentar tirar os cigarros da orelha de alguém, geralmente o nosso irmão caçula. Às vezes dava muito trabalho, mas tudo era recompensado pelos aplausos da torcida quando o cigarro ia finalmente ao chão, e o nosso irmãozinho também.


A série B era parcialmente composta pelas marcas mais diretamente subordinadas da A: Fanta, Sprite e até Pepsi, que, corria um boato entre nós, era muito mais poderosa que a Coca, só não gostava de ostentação. De vez em quando me pergunto como seria um ioiô da Kuat ou do Guaraná Antártica. Não importa. Eu tinha um da Fanta Uva bem velhinho, e ambicionava chegar ao topo da pirâmide, que pertencia, claro, à Coca. Soube de gente que matou por um ioiô da Coca. Enforcou o caboclo com o próprio cordão do brinquedo, juro.


Hoje não se mata mais por um ioiô da Coca... Mas se vir um, eu não respondo por mim.

Outra coisa que mudou foi a influência dos desenhos animados nas atitudes de crianças e adolescentes. Para o bem e para o mal, creio. Por exemplo, você não encontrará uma só criança que ainda concorde em que, se ela enfiar seus dois dedinhos nos canos de uma espingarda segundos antes de o bandido puxar o gatilho, a arma estourará na cara do malfeitor. Ou que é fisicamente possível cortar um poste com um machado, correr 500 quilômetros para o norte e ainda assim ser atingido na cabeça pelo mesmo poste. Por outro lado, ninguém mais se engana com a conversa mole do Poppeye sobre a assustadora massa muscular advinda do consumo de espinafre. A emancipação infanto-juvenil se sobrepõe a essa bobagem naturalista e recorre a métodos mais rápidos e eficazes, como anabolizantes para cavalos. E eu, que nunca comi espinafre, tampouco aderi ao halterofilismo amador, sigo ostentando esta magreza etiópica, todo orgulhoso.

Se você tiver outros exemplos de coisas que eram melhores no passado do que agora, por favor, guarde-os para você.

Vou para o túmulo com os meus.

Comentários

  1. HAHAHAHAHA, incrível. Adorei *-*

    Só tenho um comentário: Eu tive o ioiô da Coca... Bom, pelo menos é o que o meu irmão diz, porque eu não lembro. Segundo ele, cada um de nós tinha um da Coca. E ele tinha também um da Fanta e um Galaxy da Coca. Só é triste porque eu nunca soube usar, então eu arremessava o brinquedinho na cabeça do Thiago, HAHA.

    Ok, ok. Você não perguntou, mas me senti tocada e precisava partilhar isso.

    HÁ, te amo, amor!

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  2. Um Galaxy da Coca!!!!


    *____*

    Nem sei o que é, mas só pelo nome já bateu uma vontade de tê-lo, por meios ilícitos!

    Como não lembras de ter um ioiô da Coca, Thaby???? É a mesma coisa que o Neil Armstrong não lembrar de ter pisado na Lua!

    Hahaha, não bastasse a sintonia dos ioiôs, ainda temos irmãos homônimos!

    Te amo mais, Thaby!

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