Meu reino por um registro!


Certas expressões são propositalmente fadadas à redundância. Como escrever, por exemplo, sem cair em deselegante repetição que o fato a ser comentado nesta crônica chegou até meu conhecimento através do Jornal Hoje de hoje? Muito mais grave que a ausência estilística, no entanto, é o curioso valor implícito num comentário pretensamente civilizado dos redatores do programa, sobre o flagrante de uma briga de trânsito em Curitiba.

Se entendi direito (o que não é pouco provável), das três mulheres que apareciam no início do vídeo estapeando um rapaz de camisa verde, apenas uma era filha do dono da floricultura, cujo caminhão bloqueando a avenida por onde tentava passar o carro do outro homem havia motivado este a agredir o comerciante, minutos antes, legitimando o revide. A selvageria piorou de vez quando o jovem foi até seu automóvel e retornou, munido de uma caneta, para furar qualquer parte das agressoras que estivesse à mão. Não deixando por menos, uma das mulheres quebrou-lhe um cabo de vassoura nas costas.

Até aí, infelizmente, nada que qualquer motorista razoavelmente experiente ou simples espectador da era da TV não houvesse presenciado. Com raríssimas exceções — entre as quais figuram as duas desconhecidas, cuja ligação com toda a história foi ignorada, talvez por não existir —, transeuntes costumam ser naturalmente espectadores, nestes casos. Mas o problema maior ocorre quando tenta-se isentar o grupo ao qual pertencemos de culpa, como no infeliz comentário feito pelo âncora, quando o vídeo mostrava a briga no ápice:

“Na calçada, um homem assistiu a tudo sem qualquer reação.”

Com alguma presença de espírito, se você chegasse à frente da TV neste momento, presumiria que as imagens haviam sido registradas por uma dessas câmeras de segurança, certo? Do contrário, por que os jornalistas se dariam o trabalho de condenar a atitude inepta do transeunte, quando o igualmente indiferente cinegrafista que lhes enviara o flagrante passava por inocente?
Algum reacionário poderá alegar que o câmera estivesse apenas cumprindo seu dever para com a sociedade, captando flagrantes da vida real que alertam sobre o perigo da intolerância cotidiana, etc, etc. Longe de mim querer transformar o ofício de cinegrafista numa sinecura, mas até que ponto o compromisso profissional deve servir como salvaguarda da imoralidade?

Este caso me lembrou bastante o de um amigo meu. Imaginário, é óbvio. Reclamava muito de sua falta de sorte, já que andava mal vestido, mal casado, mal dormido, mal tudo. A despeito disso, passeava pela ilha de Manhattan numa manhã gloriosa, quando encontrou uma câmera de vídeo sobre uma página dobrada, semi-escondidos embaixo de um banco. Depois de verificar se ninguém o observava, meteu o aparelho no bolso, murmurou um “já tava na hora, né?” para o céu, desdobrou a mensagem e pôs-se a ler seu conteúdo:

“Às 8 horas e 46 minutos, ligue a câmera e a direcione para os edifícios mais altos à sua frente.”

Já intuindo que devia estar participando de uma pegadinha, ele obedeceu, sem saber que acabaria por registrar de camarote o maior ataque terrorista da História.

Depois que o último avião colidiu com um dos prédios do World Trade Center, meu amigo, entre calculando o preço pelo qual poderia vender aquelas imagens às emissoras do mundo inteiro e vagamente preocupado se não teria morrido parente nos atentados, deparou-se com uma discrepância óbvia: se tudo havia mesmo sido obra de terroristas, como convencer a paranóica CIA de que sua sorte em estar gravando as imagens desde o início fora nada mais do que isso, pura sorte? Podia ter pensado num álibi qualquer, mas aí lembrou-se de sua condição de imigrante ilegal e resolveu atirar a câmera no mar, com um palavrão. Ainda teria tempo de berrar outra afronta ao Criador, antes de correr para as imediações da destruição, a fim de pelo menos passar por humano solidário:

— E depois dizem que o Senhor é brasileiro... É assim que trata os conterrâneos?

Comentários

  1. Eu tive o mesmo choque quando o âncora comentou que alguém assistia à briga sem fazer nada.

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