Ensaio sobre a antropofagia

— Papai, o pica-pau é antropófago?

“Estatísticas recentes comprovam que respostas insatisfatórias dadas por adultos a perguntas formuladas durante a infância constituem a raiz dos conflitos armados no Oriente Médio. Quando o filho do primeiro homem-bomba (cujo motivo para se auto-explodir é ainda hoje um mistério) foi alertado sobre o verdadeiro porquê de o pai não ter passado sequer uma semana no novo emprego — tampouco voltado para casa a fim de relatar, dramaticamente, como fora dispensado, entre outras manias masoquistas dos recém-despedidos —, disparou o seguinte enigma na direção da meia dúzia de esposas do falecido, durante o empurra-empurra que são os cortejos fúnebres por aquelas bandas:

          — Se são os homens que mais morrem, por que tenho várias mães e só um pai, e não o contrário?


          — Desígnios de Alá — se evadiu uma delas, entre axilas à mostra.

É razoável supor que o garoto cresceu profundamente revoltado com a sociedade e suas explicações pouco didáticas, acabando por seguir o exemplo suicida do genitor e dando início, assim, a um ciclo interminável de dinamites sob as vestes. No entanto, ao contrário do que se vê na superfície, a maioria dos sacrifícios humanos posteriores ao daquele pioneiro misterioso nada teve a ver com amor a Alá. No fundo, só o que os rapazes queriam (e querem) era tirar satisfação pessoal com o Criador sobre essa história de poligamia machista — saber se fora apenas um erro de digitação nas entrelinhas do Corão —, responsável por tê-los privado da figura paterna tão precocemente”.

  

Sentado à mesa de fórmica da cozinha, Edgar acabara de ler a tal “notícia” no matinal de terça-feira. Antes que pudesse chegar à parte do jornal que informava ser aquela a nova coluna diária de um certo cronista apolítico, porém, fora interrompido pela pequena Gabriele, munida da pergunta da discórdia. Enquanto tentava desesperadamente se lembrar que diabos significava, mesmo, a palavra “antropófago”, amaldiçoava em silêncio o tio que dera um dicionário de presente à garota e ponderava se não seria melhor simular um ataque cardíaco por causa do café, forte demais, a filha insistia, sem piedade:

          — Hein, pai, o pica-pau é antropófago?

          — Eu ouvi, minha filha. Mas você está falando da espécie no geral ou de algum pica-pau em particular? — retrucou, para ganhar tempo.

          — O do desenho — explicou a menina, indicando a TV — Ele tava tentando comer o Zeca Urubu agorinha, e ainda ontem ficou babando na frente de um frango assado. Daí eu pensei...

          — Oh, sim, você quer saber como ele pode querer mastigar comida mais pesada, se não tem dentes, certo? — concluiu Edgar, eufórico. Antropófago, claro, como pudera esquecer? “Vontade de ingerir alimentos que, pelas leis da natureza, não deveriam fazer parte da nossa dieta”. Ele mesmo era um antropófago declarado! — Olha, Gabriele, o que acontece...

Mas parou, pois a menina o olhava com a única expressão com que nenhum pai quer ser fitado pelos filhos: pena.

 

         — O senhor não sabe o que é antropófago, né?

         — Bem... — o prefixo “antro” sugeria algo envolvendo a espécie humana, mas de que adiantava mentir? — Não... — e acrescentou logo em seguida, num atropelo: — Me promete que não vai se explodir por causa disso?

         — O quê?!

         — Nada, nada! O que significa?

         — Se eu entendi direito a definição no dicionário do tio André — prosseguiu ela, já indiferente à humilhação do genitor. —, quer dizer “gente que come gente”, mas tinha outra palavra mais curta pro caso dos animais que fazem isso com outros iguais a eles...

         — Canibal!

         — Isso! Canibal!

         O jeito desprovido de malícia com que a garota dissera “gente que come gente” o enterneceu, a ponto de o homem desejar por tudo no mundo que ela continuasse naquela fase da vida para sempre, no que concernia à inocência. Mas, diabo, por que as crianças não podiam decorar só os sinônimos, em vez da definição científica? Quanto constrangimento poupado! A curiosidade ainda vai matar muitos outros mamíferos inocentes, além do gato...

          — E então, o pica-pau é isso, um canibal?

          — Não, filha — explicou ele, já pisando o terreno firme da subordinação intelectual das crianças por parte dos adultos. — Ele seria canibal se comesse outros pica-paus, ou seja, pássaros da mesma espécie dele. O próprio sobrenome do Zeca deixa claro que as intenções do pica-pau ao querer jantá-lo não são canibais: ele é um urubu! E o frango pelo qual o pica-pau babou também é outra ave, certo?

         — Que nem esses que a mamãe compra no supermercado, e vive reclamando que são metade gelo, né?

        — Exatamente!

Ela sorriu, abraçando-o ligeiro.

       — Obrigada pai. Você continua sendo o homem mais inteligente do mundo, pra mim.

         E voltou para a sala, terminar de assistir pica-pau. Depois disso, ele poderia ter concluído a leitura de seu jornal sossegado, mas achou melhor inspecionar o quarto da filha. Ver se não havia dinamite embaixo da cama.

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