Cinema Novo

Mostrei minha carteirinha da biblioteca e fiquei na expectativa, como alguém que aguarda a alfândega de um país paranóico liberar sua bagagem, aliviada por constatar que o pó branco dentro dela era apenas heroína, não antrax. A moça além do vidro a examinou por bom tempo, até se convencer de que eu era realmente digno da meia-entrada.

            — Pensei que a biblioteca da UFMT houvesse renovado o modelo das carteirinhas — comentou, um desconfiado brinde verbal, me entregando o bilhete. Não havia tempo para explicar o intrincado mecanismo social que leva um cidadão a prestar vestibular para Engenharia Sanitária, ser aprovado em 4º lugar, fazer a carteira da biblioteca e nunca mais botar os pés na faculdade. A sessão já ia começar.

            Comprei toda a parafernália gastronômica de que ia precisar para enfrentar os... Quantos minutos de filme eram mesmo? Tirei o informativo do bolso e levei um pequeno susto ao fitar as informações técnicas relativas a “Anjos & Demônios”. Em “duração”, estava especificado: 16 anos; na censura, por sua vez, um grande “140 minutos” saltava aos olhos.

            O erro de impressão era óbvio demais, mas não menos incrível foi o turbilhão de sensações que aquelas informações desencontradas provocaram neste atormentado aspirante a escritor, caso fossem de fato verdadeiras. 

            Em primeiro lugar eu estaria caminhando para um recorde mundial: um filme com 16 anos de duração configuraria certamente a maior sessão de todos os tempos. Entraria com 20 anos, um Doritos e uma coca, e sairia com 36, uma artrite e quase cego devido à escuridão prolongada. Teriam de adiar o início da película para que os espectadores desavisados (eu entre eles) voltassem a suas casas para se despedir das famílias, namorada e, o que era melhor, pedir baixa do serviço militar.

            — 16 anos, Felipe!

            — Sim, mãe. Marketing hollywoodiano, sabe cumé... Mas eu prometo que volto em tempo para as bodas de diamante da senhora e do papai!

            — Meu filho, e se o mundo acabar mesmo em 2012, como disseram os maias?

            — Ora, mãe, não seja boba! A sala é à prova de ataques nucleares.

           

            Já que a censura corresponde a pouco mais de duas horas de vida, é razoável supor que muitas mães levassem seus bebês para assistir o longa-quilometragem. Difícil mesmo seria posicionar as lentes de contato bicolores sobre as íris dos recém-nascidos — uma vez que o uso dos óculos tornara-se inviável devido ao incômodo provocado em quem já os possuía, na versão transparente.

            De seis em seis meses haveria reabastecimento de coca-cola, pipocas e (por exigência minha) Doritos de queijo nacho. Festas de aniversário, Natal, dia das mães — tudo seria discretamente comemorado na sala, para não atrapalhar quem preferia não perder um dia da estória. Nos intervalos do filme — que durariam aí umas duas semanas, ocorrendo de três em três anos —, os dirigentes do shopping fariam um boletim sobre os principais acontecimentos no mundo exterior:

            — E em Abril deste ano Osama Bin Laden foi finalmente encontrado, passando-se por ministro da defesa no Brasil. Infelizmente, os crimes a ele imputados prescreveram uma hora antes de sua prisão, o que lhe garantiu total limpeza de histórico. Os assessores do ex-terrorista contaram que ele pretende começar uma vida nova nos EUA, naturalizando-se americano. Ah, e perdemos a copa de novo.

            Outro ponto interessante seria a fortíssima relação construída entre a platéia e os personagens do filme. Choraríamos com eles, sentiríamos as emoções do primeiro beijo a seu lado, aprenderíamos a rir até das piores patacoadas de que o humor inglês é capaz por causa deles. É claro que sempre haveria os críticos amadores:

            — Não sei... O Tom Hanks me pareceu mais elétrico no verão retrasado...

           

Que roteiro teria um filme com tal extensão? Poderia ser a adaptação fiel (e nesse caso os cortes definitivamente não existiriam) de um épico da nossa literatura. Guerra e Paz, por exemplo. Aí, quando um pseudo-intelectual lhe perguntasse cheio de pompa se você já lera a grande obra de Tolstoi, não haveria vergonha nenhuma em encher a boca e dizer:

            — Não, mas assisti ao filme.

 

            O final da sessão seria um clímax à parte. Os mistérios semeados durante quase 6.000 dias encontrando-se num ápice apoteótico. O herói tendo sucessivas epifanias em forma de flashes, antes de cair nos braços frios da morte. A Vilminha revelando sua verdadeira faceta, oculta desde 1997. Um figurante pelo qual ninguém dava nada, aparecido lá na primeira década do filme, mostrando-se a verdadeira mente ardilosa por trás de tudo. As pontas soltas se prendem. Tudo faz sentido! A Lei de Murphy, os massacres em Abu Ghraib, o Ato Patriótico — nada fica sem justificativa.

           

            Como os créditos finais demorariam outros dezesseis anos para terminar, levantaríamos finalmente de nossas poltronas, a sensação do dever cumprido nos rostos enrugados. Um ruído de espinhas estralando e colunas entrevando varreria a sala de projeção. Muitos não estariam preparados para retornar à civilização. Outros talvez nem quisessem. Passariam o resto de suas vidas na sala deserta, refletindo sobre o filme. Nós entenderíamos.

            Deixaríamos o cinema e teríamos uma surpresa: o mundo exterior não passava então de um imenso deserto, com nuvens radioativas impregnando o horizonte.

 

            — Não é que os maias tinham razão? — alguém comentaria, e eu me lembraria de que acabei perdendo as bodas da mamãe. — Que se há de fazer? Bora voltar pra sala, dizem que o próximo filme chama-se “A Lagoa Azul”...

Comentários

  1. — Não sei... O Tom Hanks me pareceu mais elétrico no verão retrasado...

    Aí, quando um pseudo-intelectual lhe perguntasse cheio de pompa se você já lera a grande obra de Tolstoi, não haveria vergonha nenhuma em encher a boca e dizer:
    — Não, mas assisti ao filme.

    auhauha genial!!!

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  2. Brigadão, gente.

    É o apoio de vcs que faz com que simples aspirantes como eu não desistam tão fácil.

    Abraços.

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