Livros e Memória - Parte II





Uma das melhores ideias do relativamente fraco Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, era a do grupo de intelectuais que se propunham a salvar obras literárias do esquecimento decorando-as. Num mundo em que a mera posse de livros é passível de punição (e no qual a única e irônica função do corpo de bombeiros é atear fogo a bibliotecas), os amantes da literatura veem-se obrigados a armazenar os objetos de seu culto na memória, num ritual passado às novas gerações como um hábito cuja observância é quase sagrada. Para não levantar suspeitas, nenhum dos membros dessa comunidade clandestina deve aparentar pedantismo ou qualquer espécie de superioridade material, o que acaba lhes rendendo a curiosa descrição de “vagabundos por fora e bibliotecas por dentro”, por parte de um personagem que também integra o grupo. Não bastasse o instigante efeito de nos deixar com a orelha em pé para todo mendigo com quem topamos depois da leitura (“será que ele sabe Hamlet de cor?”), Bradbury ainda consegue ampliar o fascínio dessa situação ao reduzir a importância que cada pessoa tem no todo do armazenamento de uma obra -- o que, de quebra, também torna o exercício de memorização em larga escala mais verossímil:


“Não somos nada além de capas empoeiradas de livros, sem nenhuma outra importância. Alguns de nós vivem em pequenas cidades. O capítulo um de Walden, de Thoreau, mora em Green River; o capítulo dois, em Willow Farm, no Maine. Ora, existe uma cidade, em Maryland, com apenas vinte e sete pessoas, (...) que são os ensaios completos de um homem chamado Bertrand Russell. É quase como se fosse possível ler a cidade, tantas páginas por pessoa. E quando a guerra terminar, algum dia, algum ano, os livros poderão ser escritos novamente, as pessoas serão convocadas, uma a uma, para recitarem o que sabem, e os imprimiremos outra vez até a próxima Idade das Trevas, quando poderemos ter de começar tudo de novo.”



Uma das falhas do modelo proposto no romance, parece-me, é a de consentir que intelectuais sejam recrutados para a tarefa. Isto porque basta que um deles tenha qualquer pretensão à criação literária para começarem alterações de estilo nos originais -- mudanças de início sutis, mas logo descaradas, logo criminosas e com consequências tão irreversíveis para a literatura quanto foram as da alteração daquele revisor de provas em um documento de “História do Cerco de Lisboa”, do Saramago, para a historiografia. Não, não. O ideal seria convocar pessoas sem qualquer ligação mais sentimental com os livros, porque apenas elas conseguiriam recitar a parte que lhes cabe nessas obras com isenção emocional. 


Partindo desta adaptação da ideia original, um amigo e eu discutíamos, numa conversa há meses, algumas das implicações que o armazenamento memorial "uma-pessoa-por-capítulo" teria, se se transpusesse a urgência de seu uso no romance de Bradbury para a nossa realidade. Para começar, jamais seria possível ler (ou ouvir) um romance “de uma sentada”, como se diz. Juntar todos os capítulos de um García Márquez equivaleria a reunir todos os integrantes de certas bandas clássicas, hoje em dia. Sempre haveria desencontros e picuinhas.

-- Maravilhoso! – alguém diria, depois de escutar o estupendo capítulo de abertura de Cem Anos de Solidão. – Agora o senhor aí atrás, por favor, pode começar.

-- “O filho de Pilar Ternera foi levado para a casa dos avós com duas semanas...”

-- Espere, espere. Quem diabos é Pilar Ternera?

-- Não sei, nunca li este livro.

-- Mas... Que capítulo é você?

-- O Três. 

-- O três?! E onde está o capítulo dois?

-- Morreu semana passada. Cirrose. 

-- Meu Deus... E ele não transmitiu o capítulo a um filho, neto, nada?

-- Até transmitiu, mas como ele mesmo só se lembrava das vírgulas...

Outra coisa difícil de incutir nos homens-capítulo seria a noção de spoiler contida nas introduções episódicas de certas obras clássicas.

-- Ok, muito obrigado, capítulo XXXII; agora, senhor XXXIII, se o senhor pudesse, POR FAVOR, ao contrário de seu colega, nos poupar das antecipações da trama que estão no seu títu...

-- “Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve D. Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim trágico à novela do curioso impertinente.”

-- Porra!

Mas nenhum drama se compara, neste cenário, ao do capítulo CXXXVII de "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Já o imaginamos um homem de meia-idade, sem emprego, a barba por fazer, abandonado pela mulher e evadido de mil cursos na faculdade. Já o imaginamos alvo de risinhos e tristes balançadas de cabeça por parte dos moradores locais, que só conseguem ver nele o mérito de nunca ter tido um filho – e haver poupado, portanto, a criança da obrigação de herdar tão terrível legado de pária. Já o imaginamos caindo de bêbado nas segundas pela manhã, acreditando, pela milésima vez, ter assimilado as palavras que fora aleatoriamente incumbido de decorar como um lema de vida, e só saindo de casa para recitá-las de má vontade para caravanas de turistas intelectualoides, porque, afinal, é o salário que a comunidade lhe paga por esse exercício de humilhação, quase com dó, que ainda o mantém vivo.

-- O senhor é o 137 do Brás Cubas?

-- Sim.

-- E então...?

E o 137, com um suspiro, diz:

-- “Ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.”

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