Sobre sonhos e vírgulas
Mas, sem que a mulher parecesse recordar sequer de ter sonhado algo, os monólogos continuaram, e na segunda semana ela já não pronunciava apenas o “i”, mas um estranhíssimo “ivê”. Depois de conjeturar vagamente se aquele não seria o apelido íntimo do Ivanildo, casinho de faculdade dela, o Felipe decidiu que era hora de procurar um analista. Sozinho, pois temia que a presença da esposa fosse interferir subjetivamente no prognóstico quiçá bombástico que o homem poderia lhe dar.
O Doutor Borges era um daqueles sujeitos que pareciam preferir estar fazendo qualquer coisa no mundo, menos exercendo a profissão para a qual haviam estudado. Ouviu pacientemente a história do Felipe, demonstrando especial interesse na parte em que este falava do histórico de sonhos premonitórios na família da esposa; depois, afagando o clichê em forma de cavanhaque, quis saber:
— Você já perguntou a ela se os sonhos lhe dizem alguma coisa?
— Na verdade, não contei nada sobre essas conversas noturnas a ela — admitiu o outro — Acho que, sem policiamento, pode ser que acabe revelando algo mais elucidativo, o senhor entende?
O Dr. Borges entendia. Recomendou, então, que, ainda na surdina, o Felipe gravasse o que a esposa diria nas semanas seguintes, voltando ao consultório a cada nova palavra surgida durante o sono. Se tudo saísse como esperava, os sonhos perturbadores deixariam de ocorrer a partir da sétima semana.
Assim, sem saber que era grampeada ao cair da noite, a Acsa passou do “ivê” ao “ivêxis”, daí para o “ivêxiselei”, pro “ivêxiseleieleixis”, até chegar no ultra-enigmático “ivêxiseleieleixiselexis”. Na sétima semana, entretanto, como o Dr. Borges previra, o Felipe correu para o consultório com um sorriso de orelha a orelha, alardeando que os monólogos haviam cessado.
— Como conseguiu essa mágica, doutor? — perguntou ele, maravilhado. Borges sorriu, aparentemente apenas satisfeito com o primeiro resultado positivo alcançado em séculos de divã. Guardando a fita com a última gravação no bolso do paletó, acrescentou aí uma meia dúzia de postulados freudianos a respeito do mundo onírico. Felipe, que já vinha estranhando a ansiedade no rosto do doutor, toda vez que aparecia com outro neologismo da esposa, achou mais esquisito ainda o fato dele não ter cobrado por aquela última consulta. Mas quem se importava? A Acsa estava curada e a economia só viria a calhar, ué. Despediu-se e voltou para casa.
Alguns dias mais tarde, após outra noite tranqüila onde o único ruído produzido pela companheira de cama fora o da respiração, Felipe a encontrou absorta na manchete principal do jornal da manhã, sentada à mesa da cozinha.
— Viu, amor? — indagou a mulher, sem tirar os olhos do periódico. — Até que enfim saiu um ganhador da Mega-Sena aqui da cidade. Uma pena ter sido tão injusto, pois o cara é doutor, não devia precisar. Tal de Borges, estranho ele dar o nome...
Quase engasgando com uma torrada, o homem conseguiu gaguejar:
— Q-Quais os números sort-sorteados?
— Ah, peraí... esse jornal é cheio de frescuras, as dezenas vêm em algarismos romanos... São elas: I - V - X - LI - LIX - LX... O que, no nosso sistema arábico, dá: um, cinco, dez, cinquen.. Amor? Amor, você tá pálido, aconteceu algu... Meu Deus, uma ambulância, aqui!
Donde conclui-se que:
1 - Em vigília ou dormindo, é essencial saber posicionar a vírgula corretamente;
2 – O importante não é o sonho, é o intérprete.
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kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirEsse foi ótimo, Felipe.
E o casal, é Fictício ou real? Dou maior apoio, heim.
Só se cuidem pra não cair na mesma "da inspiração" kkk
Abraço.
Hahahaha... Demais!! Gostei mesmo...
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