Os Ladrões de Biblioteca

Ao contrário do que a imprensa sensacionalista não tardaria a alardear, a inspiração para criar o grupo não partira de Robin Hood, mas da própria necessidade. Quando a biblioteca local decidira simplesmente parar de emprestar livros (numa época em que, graças às recentes adaptações cinematográficas, a procura por certas obras só fazia crescer), imaginou-se que haveria apenas protestos tímidos, logo eclipsados pela passagem corrosiva do tempo. Nada que se comparasse à ousadia daqueles leitores indignados.

Dada a falta de experiência, a primeira ação fora, precisavam admitir, mal organizada e pessimamente executada. Embora houvessem conseguido a cópia da chave mestra com uma bibliotecária aliada, não tinham prioridades, ignoravam que as luzes internas só podiam ser ligadas às 7h da manhã e muitos acabaram não comparecendo, o que despertou nos presentes o temor da traição. No escuro e com medo, agiram de forma apressada e nada silenciosa, só se atrevendo a verificar o saldo da empreitada quando já estavam a um bom número de quadras do local, sob a luz amarela de um poste: sete volumes, entre enciclopédias e obras em braile.

— É como assaltar uma loja de sapatos de grife e só levar os pés esquerdos! — revoltara-se uma estudante de Letras. Todos concordaram.

A especialização, no entanto, viria com a prática. Para os assaltos seguintes, levavam lanternas, decidiam previamente qual seria o foco (se literatura russa ou alemã, por exemplo) e certificavam-se de que ninguém daria para trás, submetendo os novos membros a testes básicos cujo objetivo era dividi-los em níveis de amor aos livros — “Qual o grau de parentesco entre o Érico e o Luis Fernando?”, “Complete o seguinte verso drummondiano: ‘No meio do caminho havia uma...’ a) Pedra b) Moeda de 400 réis c) Tartaruga Virada d) Lombada” etc.

O acervo do estabelecimento foi diminuindo perceptivelmente. Desconfiados, os coordenadores instalaram alarmes ópticos em todas as saídas. Como os delitos continuassem, foram obrigados a deduzir que a coisa vinha de dentro, trocando o quadro de funcionários e contratando leitores assíduos para vigiar disfarçadamente os novos empregados.

A medida seguinte — substituir as fechaduras — até daria certo, não fosse por sua antecessora. Quatro dos cinco espiões contratados eram na verdade agentes duplos, leais à causa VRDB (de “Verdadeiros Ratos de Biblioteca”, como a quadrilha se autonomeava). Quando alguém das internas sugeriu que voltassem a emprestar os livros, pelo amor de Deus, já era tarde: tiveram de fechar por falta de acervo.

Insaciável, o VRDB decidiu conquistar outros mares, e, de caso isolado, os assaltos a bibliotecas viraram epidemia. Transferidos para estabelecimentos distintos, os três vigias e a funcionária das chaves ampliaram o leque de ação dos ladrões. No começo, tinham consentido em roubar apenas de lugares onde não era permitido emprestar livros, salvo livrarias, sebos e afins, que escritores e comerciantes precisavam se sustentar. Mas não demorou até invadirem bibliotecas escolares e universitárias, justificando-se com post-its do tipo: “Não à multa por atraso!” e “Quem consegue ler Guerra e Paz em 7 dias?”

A comparação com Robin Hood surgira quando descobriu-se que, ao contrário dos boatos correntes, o grupo não revendia as obras furtadas (mesmo as de grande valor) em bazares, sebos etc. Fazia, vejam só, questão de redistribuí-las nas favelas, periferias e bairros onde não houvesse acesso a elas, democratizando os clássicos e disseminando o gosto pela leitura. Num efeito dominó natural, os volumes jamais ficavam acumulando poeira nas estantes, sendo passados adiante tão logo chegava-se à última página. “Livro gasto é livro lido”, pregava o VRDB. “Comparam-nos a Robin Hood, embora o que estejamos dando ao povo seja muito mais valioso que dinheiro!”.

Nesse ponto, havia discordâncias.

Ganharam fama depressa. Deles dizia-se que, se existissem desde os tempos antigos, aquela tragédia em Alexandria nunca teria ocorrido. As provas para recrutar novos membros eram agora concorridíssimas, com testes complexos que incluíam da descrição pormenorizada da planta dos três maiores acervos literários do mundo, até gincanas histórico-filosóficas para descobrir onde se dariam os próximos assaltos. Cursinhos preparatórios clandestinos proliferavam anunciando “Seja um rato você também! Primeira semana de aulas grátis!”

Para o VRDB, o céu era o limite — ou a biblioteca do congresso americano.

Corroborando a previsão de vários especialistas, com o tempo o nível intelectual da população foi crescendo. Kafka, Augusto dos Anjos e Dostoievski estavam na boca do povo. Discutia-se as grandes distopias como outrora discutia-se o futebol, à mesa do bar. Os pais que ainda se atreviam a contar velhas fábulas para os filhos pequenos à hora de dormir eram enxotados do quarto sob gritos de “Proselitismo burguês! Proselitismo burguês!” As pessoas não apenas sabiam distinguir o Álvares do Aluísio, como liam Quevedo no original.

As autoridades, contudo, não estavam gostando daquilo. Já vinham sendo pressionadas a atuar energicamente desde a vergonhosa pichação na sede da ABL (“Imortal, aqui, só o jabá”), sem falar nos estudantes de biblioteconomia, com sua total falta de perspectiva profissional, e na classe educadora, que não suportava mais escutar a palavra “autodidata”.

Mas foi em ano eleitoral que a coisa atingiu o ápice.

O primeiro fardo coube aos redatores. Tinha-se tornado bastante incômodo elaborar discursos de campanha cada vez mais complexos, dada a elevada instrução das massas, que enxergavam “pão e circo” na menor referência à distribuição de cestas básicas ou reforma de ginásios poliesportivos, além de bradarem algo como “Novilíngua, não!” sempre que informadas sobre os supostos benefícios que outra reforma ortográfica traria para o idioma. Pesquisas mostravam que o grosso da população desligava a TV durante o horário político, o que não era lá grande novidade. Preocupante mesmo foi descobrir o que andava fazendo enquanto isso...

Para desespero da classe, o romance Ensaio Sobre a Lucidez, de Saramago, ficou subitamente popular às vésperas da votação, de sorte que, como no livro do autor português, o resultado obtido nas urnas foi absolutamente perturbador: para todos os cargos, 82% dos cidadãos votaram em branco ou anularam o voto. E, o governo sabia, era questão de tempo até os 18% “mentalmente sãos” aderirem à anarquia.

Um absurdo! Se ainda tivessem protestado combinando eleger candidatos bizarros, como os rinocerontes, bodes e ornitorrincos dos tempos de cédula, dariam um jeito de meter os bichos em ternos e adaptariam suas poltronas na câmara. Mas o que aconteceria às eleições diretas se a insatisfação popular ultrapassasse aquele ponto crítico? A economia ficaria abalada, os investidores estrangeiros retirariam seu capital de um país imerso em instabilidade. Constituição e Código Eleitoral divergiam sobre o tema. Era preciso salvaguardar a democracia. E só havia um jeito de fazê-lo: instaurando a ditadura, ao menos no segmento responsável pelo colapso iminente.

As medidas enérgicas iniciaram-se pela declaração de que o VRDB era inimigo do Estado. Houve campanhas para demonizá-lo na mídia. “Quem rouba um livro, mata um vivo” dizia certo anúncio, dramaticamente. “Proust é um convite à Proustituição!”, redundava outro. Em rede nacional, pessoas de aspecto humilde apareciam para contar o horror infligido a suas vidas pela ação do bando. Uma família relatava o drama vivido durante o que imaginava ser apenas outro dia tranqüilo de visita à biblioteca: “meu marido foi atacado a machadadas!” contava a mulher, referindo-se à volumosa antologia de contos de Machado de Assis. “Nosso garoto surtou lendo Berkeley! Tivemos de interná-lo às pressas...”, chorava outra. “Se não fosse por aqueles versos malditos do Baudelaire, ela jamais teria se matado...” Mas a população vacinara-se contra aquilo desde a Inquisição: salvo raros agentes do governo infiltrados e, claro, os próprios bibliotecários, ninguém delatava membros da quadrilha, que, entrementes, seguia distribuindo instrução à custa de assaltos.

O AI6 (de “Ato Irracional nº6”, como ironizava o povo) determinou a prisão imediata de qualquer pessoa que fosse pega portando um livro com carimbo de biblioteca. Se o suspeito saísse correndo, os policiais tinham ordens de atirar para matar. Quem quisesse ler teria de recorrer unicamente às livrarias (sebos e bazares eram vistos com certa desconfiança, dada a origem controversa de suas obras), cujos catálogos haviam sofrido terrível inflação e constituíam-se basicamente de romances água-com-açúcar, manuais de auto-ajuda e textos religiosos. Universitários se viravam traficando cópias ilegais retiradas da internet. A polícia já não precisava de mandado judicial para revistar a residência ou o HD de quem quer que fosse, mesmo à luz do dia.

Mas o VRDB resistiu.

O cerco às obras ilegais se acirrou. Fecharam-se todas as bibliotecas, sebos, bazares literários e até bancas de revista. Professores eram instruídos a priorizar os aspectos técnicos da língua, em detrimento das “críticas sociais” embutidas nos parágrafos analisados. O neologismo “desalfabetização” ficou popular. Clubes de leitura precisavam de alvará expedido pelo próprio TSE para continuar funcionando. Sites e blogs voltados ao assunto saíram do ar. Os livros confiscados eram queimados num enorme aterro da polícia federal. Muitos deixaram o país citando Heinrich Heine: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.” Alfandegários ficavam aliviados ao constatar que os blocos retangulares detectados na bagagem de certos passageiros eram apenas maconha, não a obra completa do Foucault, sei lá. Estava oficialmente proibido aludir aos grandes pensadores.

Quem não se exilou, teve de retornar à era pré-Gutenberg, copiando livros “manualmente”, via editor de textos, e distribuindo-os pela internet, cujo sítio era impossível se consumar. Houve o resgate da tradição oral, com as velhas histórias à hora de dormir. Um caso emblemático foi o da garota que saltou do décimo segundo andar para não entregar o livro que tinha em mãos. Segundo testemunhas, tratava-se de “Não Verás País Nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão. A imprensa oficial, porém, estampara fotos do cadáver portando um exemplar do Mein Kampf, de Hitler.

As autoridades resolveram mirar sua metralhadora no hábito em si. Algumas reportagens encomendadas acabavam desrespeitando as próprias leis, como as que citavam autores conhecidos (“Estudos recentes comprovam a sabedoria de Schopenhauer: ler não apenas embrutece, mas também causa o pior tipo de catarata...”) A figueira milenar que dava nome a uma cidade interiorana fora derrubada na praça central, sob suspeita de que a mensagem codificada a canivete em seu tronco era oposicionista — mais tarde, os lingüistas oficiais constataram que não, eram mesmo só nomes de dois namorados inscritos num coração. Investiu-se alto na produção de formas inofensivas de lazer (reality shows, programas de auditório, novelas, carnaval etc.).

Com a extinção definitiva das bibliotecas, imaginava-se que o VRDB houvesse se dissolvido na luta geral contra as medidas anti-Literatura do governo, mais ou menos como os caras-pintadas após a queda do Collor. Daí a surpresa da população ao encontrar um novo partido entre os que disputariam as próximas eleições. Um partido cuja sigla lhe abrira bem a mente, anos antes...

Os lendários ex-militantes do VRDB nunca estiveram tão otimistas. Na reunião que selara o acordo com os antigos inimigos políticos, haviam garantido que desta vez não teriam problemas com votos brancos e nulos. As primeiras pesquisas eleitorais confirmavam isso. Claro, tinha a parcela expressiva a ser convencida de que aquilo não era outro estratagema do governo, com a sigla significando, na verdade, “Velhos Roedores De Bunda”. Também asseguraram que, após a vitória — tida como certa —, a insatisfação popular quanto às leis de desestímulo à leitura haveria de desaparecer.


Nem que, para isso, precisassem desalfabetizar todo mundo.




Comentários

  1. TE ADORO! TE ADORO! TE ADORO!

    VOU COPIAR E DISTRIBUIR PRA TODO MUNDO.

    COLOCA NA LOUCOS S/A.

    ResponderExcluir
  2. Own, Luci, bondade sua...

    Fico sem palavras com este seu ato.

    *__*

    E sabe que tens razão?

    A comuna anda tão parada que daqui a pouco o Orkut tira do ar...

    Beijos!

    ResponderExcluir
  3. Não reclama, Felipe, você é um escritor fantástico. Não posso resistir a divulgar seu talento. Além disso, que risco você corre? Só tenho seicentos alunos...

    ResponderExcluir
  4. Não sei por que perdi tempo e não passei por aqui antes! Cara, você manda bem demais!

    No meio do conto há uma atmosfera orwelliana com toda essa manipulação de mídia que ficou excelente.

    Agora, diz aí, onde que rolam essas provinhas para o VRDB? hahaha

    ResponderExcluir
  5. E aí Irmão?
    Indiquei você para ganhar o selo de qualidade do blog Caderneta Azul.
    Acessa o link que tu entende melhor: http://livrosecontosdoguga.blogspot.com/2011/03/selo-de-qualidade-caderneta-azul.html
    O negócio é postar o selo no teu blog, responder a umas perguntas e indicar outros blogues...
    Abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas